Translate

19/12/11

COMPORTAMENTOS APRESENTADOS PELOS CÃES NO SEU RELACIONAMENTO COM OS HUMANOS

Poderíamos considerar que, para um cão, um figurante de treino pertence sempre a uma espécie que vai “lutar” com outra. Devido a essa situação, o figurante deve ser sempre uma pessoa desconhecida tanto do cão, como do adestrador como do dono. Quando estimulados os seus instintos, o figurante trata de o “obrigar a sobreviver”, toda a sua filogenia (o que está gravado nos genes) está presente no acto de defesa, morderá ou será obrigado a retirar-se do território do humano. Este comportamento é equiparado ao do cachorro que procura a protecção entre as pernas do seu dono. Para trás ficaram as sessões de brincadeira com a manga e a diversão da caça, agora há que enfrentar ou retirar-se.

Analisando esta questão sob o ponto de vista etológico e abandonando as nossas considerações antropomórficas sobre o cão, vejamos como actuariam em liberdade e assim compreenderemos muitas das condutas desconcertantes desta grande espécie.

A luta directa é frequente na natureza mas, é ainda mais frequente não chegarem a ela. O mais normal é a mescla de luta + exibição.

Porque se exibe o cão perante o figurante? Efectivamente só actua como faria com outro membro da sua espécie com quem está a disputar um recurso, fêmea, território ou para evitar a depredação. Até há bem pouco tempo considerava-se que este comportamento era motivado pelo bem da espécie. Hoje já ninguém duvida que os animais saiem beneficiados na evitação da luta, sempre e quando se saiba a priori qual irá ser o resultado. Se vale a pena, arrisca-se, se os benefícios são poucos, retira-se.

Estratégias “gavião, pomba e burguês”

A estratégia “gavião” consiste em lutar sempre. A “pomba” em exibir-se a ver se dá resultado e se não, retirar-se.

Maynards Smith em 1978 publicou um estudo muito completo sobre este modelo de comportamento. Nele associava a uma luta, um custo, a uma ferida, outro, e a um display (conjunto de sinais que predizem um comportamento complexo) um custo muito inferior. Aplicou uma matriz aos custos dos distintos enfrentamentos e, dos seus resultados, chegou à conclusão de que: ou numa população há indivíduos que actuam sempre como “gavião” ou como “pomba”, ou o mesmo individuo comporta-se sete vezes como “gavião” e cinco como “pomba”.

Este tipo de comportamento é realmente muito difícil de encontrar na natureza pelo que chegou-se à conclusão que existe uma outra classe de estratégia, a do “burguês”. Consiste em que: um animal porta-se como “gavião” quando é o dono do recurso e como “pomba” quando é o intruso.

Devido a isto, e aplicada a matriz correspondente ao estudo experimental, podemos afirmar que: numa população onde existam as três estratégias, vencerá sempre a do “burguês”.

O cão será sempre mais forte no seu território, ao lado do seu amo, na defesa da sua prole ou defendendo o recurso. Extrapolando a estratégia do “burguês” para a espécie humana vemos que um homem, por débil que possa aparentar defenderá com arrojo a sua casa e a sua família. Esse mesmo homem demonstrará debilidade se vir a casa do seu vizinho ser assaltada e à primeira dificuldade fugirá aceitando a derrota. Realmente, o que está em disputa neste último caso é algo que nunca teve, enquanto que no primeiro o que defende é a sua própria vida e tudo o que ele possui. Neste contexto, pode ser aplicado o ditado chinês: Teme a ira de um homem pacífico!

Estes comportamentos aplicados à nossa realidade

Se trabalhamos com muitos cães temos oportunidade de observar as três estratégias:

• O cão morde sempre que se “sente” agredido;
• O cão nunca morde mas exibe-se;
• O cão morde somente quando se defende ou está em perigo o seu dono ou o recurso.

Evidentemente esta última estratégia é a mais rentável para o animal e podemos assegurar que é adaptativa e evolutivamente estável e, devido a isso, devemos procurar os exemplares que saibam decidir a estratégia que devem utilizar em cada momento. Em termos coloquiais, o que nos interessa é o cão “burguês”.

22/11/11

INTELIGÊNCIA, APRENDIZAGEM E MEMÓRIA NOS CANÍDEOS

A Inteligência

A inteligência canina, à semelhança do que acontece em muitas outras espécies, pode-se configurar como qualitativamente igual à nossa mas quantitativamente muito inferior. Quando falamos de inteligência confrontamo-nos sempre com a mesma questão: O que é e como podemos defini-la? Se houvesse um só padrão para podermos medir o grau de inteligência inter ou intra-específica, não teríamos problemas para escalonar um animal, no seu nível intelectual, em relação à espécie humana.

Num seminário em que participei numa Universidade Espanhola e que foi ministrado por um Professor de Psicologia e por um Professor de Etologia, um dos temas em discussão foi o da inteligência animal. Durante o debate passou-se do antropomorfismo ao cepticismo e da paixão ao pragmatismo. No final e, perante a tese de que os animais superiores “pensam” qualitativamente igual a nós, alguns assistentes protestaram veementemente. Concretamente um deles definiu a inteligência como “a capacidade de criar ou produzir algo que tenha a ver com arte”. O Etólogo argumentou que determinados primatas pintaram quadros muito parecidos aos de Picasso e outros, inclusivamente criaram um estilo próprio, depois de um adestramento adequado. A anedota surgiu quando um dos participantes, com falta de justificações científicas para desmontar a tese, comentou: “Para mim, inteligência qualitativa é um chimpanzé escrever D. Quixote de La Mancha!” O Professor de Etologia, com ar astuto respondeu: “Nem você nem eu juntos e em muitos anos, seríamos capazes de competir com Cervantes em tal façanha e assim, segundo as suas razões, está-nos a equiparar em inteligência a um simples chimpanzé!”.

A nossa inteligência, comparada à de um cão, é igual mas com um período evolutivo impressionante a nosso favor. Assim, o animal prevê a consequência de uma resposta, associa estímulos, cria padrões próprios de conduta e realiza um monte de sequências baseadas no mesmo padrão inteligente de um ser humano. Fundamentalmente, o que distingue o tipo de inteligência do homem da do cão é que, enquanto este aprende a resolver os seus problemas e conflitos de sobrevivência através da inteligência associativa, o homem para atingir os seus objectivos utiliza outro tipo de inteligência mais complexa e mais elaborada, a cognitiva.

A Aprendizagem

Em termos gerais entende-se por aprendizagem, qualquer mudança de conduta de um animal, numa situação determinada, que é atribuída à sua experiência prévia com essa situação ou com outra que compartilhe certas características. Excluem-se por tanto, as mudanças que se devem à adaptação sensorial, à fadiga muscular, a possíveis danos físicos ou à maturação mental.

Podemos assim chegar à conclusão que um cão aprendeu algo, quando observamos uma mudança significativa no seu comportamento mas, temos que distinguir entre aquelas mudanças que se devem à aprendizagem das que se podem atribuir a outras causas. Se um cachorro procura comida num determinado local, e que algumas horas antes não o fazia, pode-se dever esta conduta a que agora esteja com mais fome que antes e que o que mudou foi o seu estado motivacional.

Foram propostas diversas classificações para os distintos tipos de aprendizagem:

1. Aprendizagem não associativa

Quando, depois de várias ocasiões nas quais se expõe o animal a um estímulo, este deixa de licitar uma resposta, diz-se que se produziu uma habituação. Podemos assegurar que, se a habituação está tão estendida no reino animal, deve ter uma grande importância biológica na hora de descriminar e tomar decisões apropriadas a cada situação evitando o gasto inútil de energia que implicaria o responder de forma repetida a estímulos que a experiência demonstra que são irrelevantes. Um cão jovem é normal que ladre a qualquer coisa (inclusive a uma mosca). Quando passa à fase juvenil o ladrar sem necessidade só implica um gasto de tempo e sobretudo de energia sem obter consequências positivas.

A aprendizagem também pode causar o aparecimento de novas respostas em vez da extinção das antigas. A este mecanismo dá-se o nome de sensibilização. Assim, um cão pode dirigir certas respostas em função de um estímulo, previamente neutro, depois de haver sido exposto a estímulos motivacionalmente importantes como o alimento (+) ou um castigo físico (-).

2. Aprendizagem associativa

Caracteriza-se porque o cão aprende a associar dois estímulos unidos no tempo. No condicionamento clássico ou Pavloviano, o primeiro estímulo é o condicional (uma luz, som, etc.) e o segundo o incondicional (alimento, água ou carícias). A vantagem da mudança para o condicionamento operante ou instrumental, primeiro é o sucesso de uma resposta comportamental do cão mais assertiva e o segundo, é a consequência que obtém desse comportamento. Tanto utilizando um método como o outro, a consequência será sempre reforçante.

A capacidade de aprender através destes dois tipos de condicionamento, resulta num grande valor adaptativo porque permite ao cão fazer com que seja mais previsível tudo o que ocorre no seu meio ambiente e responder com um comportamento mais adequado. Não obstante, o condicionamento operante é o melhor método dos dois porque permite ao cão desenvolver uma grande capacidade de “inventar”. Se para além disso, o animal, possuir uma certa capacidade cognitiva, o repertório pode aumentar exponencialmente. Noutras palavras, graças à aprendizagem associativa, o cão pode identificar relações de contingência e relações causais entre acontecimentos externos e o seu comportamento e os efeitos que estas podem ter.

3. Aprendizagem latente

Existem ocasiões em que um animal adquire informação do seu meio ambiente sem necessidade de obter uma resposta concreta e imediata. A este tipo de aprendizagem dá-se o nome de latente. Sabe-se que a informação está aí porque, dadas as condições apropriadas, o organismo faz uso dela. Normalmente adquire-se por exploração e pode ser de um grande valor adaptativo. Em liberdade poderia, por exemplo, ser a diferença entre ser depredado ou não. Quase todos os animais mostram precaução perante uma coloração apossemática (que não é venenosa) ou de advertência que exibem as suas possíveis presas.

4. Aprendizagem súbita

Tem lugar quando um indivíduo é capaz de resolver um problema sem recorrer ao processo tentativa / erro. Noutros termos, poderá dizer-se que o cão é capaz de usar informação, obtida num dado contexto, para resolver mentalmente, um problema surgido noutro contexto diferente.

Quando um animal resolve uma situação rapidamente, devido à experiência adquirida na resolução de outras similares, diz-se que desenvolveu estratégias de aprendizagem (learning sets). Realmente estas estratégias são de um grande valor adaptativo porque poupam ao cão uma grande quantidade de tempo na aprendizagem que, de outro modo, se perderia se tivesse que resolver cada problema em separado. Em termos de adestramento chamamos a este conceito capacidade de resolução.

5. Aprendizagem social

Os animais que vivem em grupos sociais – como é o caso do cão – são capazes de aprender com outros indivíduos da sua espécie. É normal os primatas aprenderem a usar “ferramentas” para se alimentarem e inclusivamente, o uso de plantas medicinais. Nos cães que vivem em “matilhas mais ou menos livres” podemos observar como os cachorros que não tenham sido condicionados a um estímulo, reagem frente a ele, como viram fazer os seus progenitores.

Resumindo

De todas as formas de aprendizagem a mais utilizada, devido aos seus bons resultados, é a associativa instrumental ou operante. Realmente é aquela que preconizamos e utilizamos no nosso trabalho ainda que, logicamente ajustada à capacidade de cada indivíduo, e à sua raça.

O problema do adestrador complica-se sempre que, em vez de utilizar um rato de laboratório, indefeso perante as nossas manipulações, se enfrenta com um animal que não tem “nenhuma vontade” de se submeter a nenhum condicionamento e que para além disso se sente apoiado pelos seus dentes e pelo seu dono. Nunca vimos nenhum cão contente no primeiro dia que lhe colocamos a coleira e o obrigamos a adoptar uma postura de submissão. Com o passar do tempo e se a aprendizagem a que foi submetido é a correcta, voltará louco de alegria ao ver “o instrumento de tortura” nas nossas mãos.

A Memória

Quando falamos de aprendizagem não podemos descartar ou separar o factor memória como uma função do intelecto. Tradicionalmente os fisiólogos da conduta distinguem dois tipos de memória: de curto prazo e o de longo prazo. Realmente esta distinção baseia-se no tempo que leva o animal a esquecer um facto.

Os processos necessários para que um animal possa recordar um facto passado são: a codificação, a consolidação e a recuperação.

No primeiro processo a informação que se dá ao cão, passa a memória de curto prazo. A consolidação consiste na transferência dessa informação, desde a memória de curto à de longo prazo. A recuperação produz-se quando o animal necessita dessa informação para resolver um problema ou uma situação.

O processo mais importante dos três, para utilizar no adestramento, é sem dúvida o da consolidação. Nele intervêm uma variedade de hormonas e neurotransmissores. A adrenalina tem um importante papel na consolidação dos processos de aprendizagem, de tal forma, que uma certa concentração plasmática de glucose, provocada por ela, é benéfica assim como um aumento importante pode provocar um efeito contrário.

A consequência prática do exposto é que uma activação normal ou média do sistema nervoso facilita a aprendizagem assim como uma dose de stress o medo dificulta seriamente os processos de consolidação.

24/10/11

O MUNDO ATRAVÉS DO OLFACTO - 3ª Parte

O Rastreio Desportivo


Neste artigo sobre Rastreio Desportivo, último de uma trilogia dedicada ao mundo dos cães visto através dos odores, vamo-nos debruçar essencialmente na disciplina de pistagem de RCI e no Steurthond-FH da FCI.

Perante o Regulamento de uma prova de Steurthond-FH (veja caixa) ou da disciplina de pistagem de uma prova de RCI, ou qualquer outra similar de origem alemã, temos que adaptar o trabalho a certas peculiaridades normativas que se separam do tipo de rastreio analisado em artigos anteriores desta trilogia e que nos obrigam a uma análise e a uma abordagem diferente.

O observador estranho a um desporto deste tipo, que presencie uma prova de rastreio, deve considerar muito simples o adestramento realizado ou a execução dos exercícios. Vê um cão que caminha à frente do seu guia, procurando vários objectos num terreno que poderá ser relativamente pequeno ou maior em função do grau em que se está a competir. Pode supor que é bastante simples e chegar a pensar que o “o meu cão” pode fazer a mesma coisa mas com mais alegria e rapidez. Nada mais longe da realidade!

Estes regulamentos oferecem numerosas dificuldades, entre elas podemos destacar a obrigatoriedade de o cão só se poder orientar através do olfacto, com o nariz continuamente encostado ao solo, que não se afaste das pegadas deixadas pelo traçador, que se mantenha a dez metros do guia (sem possibilidade de voltar para este) e muitas outras dificuldades que o cão terá que suplantar.

O sistema de aprendizagem utilizado para esta área do trabalho desportivo canino baseia-se nos mesmos princípios dos utilizados para o rastreio civil, quer dizer, no fomento dos instintos de caça e presa.

Se possuímos um animal predisposto à satisfação de ambos os instintos, procuraremos um terreno nas melhores condições possíveis para este tipo de trabalhos. Queremos dizer que, no caso de estar lavrado, a terra deverá apresentar-se solta e algo húmida, sendo o frio e as primeiras horas da manhã os melhores companheiros do rastro. Se nos confrontamos com terreno de erva, de igual forma, o frio, a humidade e a madrugada nos irão ajudar nessa tarefa.

Uma vez encontrado um bom terreno, o trabalho inicial prendesse com a habituação do cão em colocar o nariz no chão quando precisa de encontrar aquilo que pretende, assim, espetamos uma pequena bandeirola que nos irá indicar, a nós e ao cão, o início da pista. De seguida, pisamos durante algum tempo uma área de cerca de 1m2 onde colocamos concomitantemente vários pedaços do motivador escolhido (normalmente utilizam-se finas rodelas de salsicha). O guia fará com que, dando-lhe a cheirar um pequeno pedaço de salsicha e indicando-lhe onde estão os restantes, o cão coma todos os pedaços sem levantar a cabeça.

Com este primeiro passo, que repetiremos dez vezes em dias e lugares distintos, começamos, igualmente, a introduzir a ordem correspondente, que pode ser, por exemplo, “busca”, associando-a ao início do percurso da pista e, como tal, à bandeirola e ao odor libertado pelo solo ao ser pisado.

O passo seguinte consiste em colocar os motivadores nas pegadas conforme o traçador vai caminhando no traçado de pista. A evolução deste processo prende-se com o aumento do tamanho da pista e a consequente alternância da colocação dos pedaços de salsicha nas pegadas, que cada vez serão mais escassos. Portanto, a quantidade de motivadores é a mesma tanto no início da aprendizagem como quando o cão já for um expert, o que muda, é a frequência com que se coloca os pedaços de salsicha ao longo da pista.

Para dificultar o trabalho do cão, este tem que encontrar alguns objectos que o traçador colocará assim como seguir um percurso com linhas rectas, ângulos rectos, mais fechados e mais abertos, linhas curvas e em zig-zag, vários tipos de terreno: erva, terra, caminhos traçados por animais, lombas, terrenos alagados, vales, pistas falsas, etc.

Ao mesmo tempo, ensinamos que ao encontrar um objecto colocado pelo traçador, o cão deve assinalá-lo deitando-se, sentando-se ou trazendo-o, em função da maneira como o guia o treinou.

No caso de necessitar um reforço do instinto de caça, podemos alterar a frequência com que disponibilizamos os motivadores no traçado da pista e devemos ter constantemente em atenção que há sempre pedaços de salsicha na pista para que o cão tenha um objectivo quando realiza este trabalho.

Mas também no trabalho de rastreio há que respeitar as fases que recomendamos para a obediência, e que não é supérfluo voltar a recordar. A primeira: aprendizagem por motivação; a segunda: trabalho por obrigação e por último, trabalho por motivação conhecendo a obrigação. Quer dizer que, quando o cão sabe o que tem que fazer para levar um rastro até ao fim e com a finalidade de se auto-satisfazer, devemos passar à segunda fase aquela em que obrigaremos o animal a realizar o trabalho sem outra recompensa que não seja o nosso reconhecimento que é o facto de o libertarmos do exercício. Quando comprovamos que a execução é a correcta nesta fase e não observamos tentativas de evitação do trabalho, passamos a introduzir, de novo, os reforços sendo esta a última fase do adestramento.

É conveniente recordar que devemos ser pacientes e constantes no trabalho para ter um bom cão de rastreio. Devemos controlar adequadamente todos os factores que incidem na pistagem, especialmente na fase de aprendizagem, já que necessitamos de cães bem motivados e treinados para entrar nas etapas seguintes com a garantia de êxito final.

16/09/11

O MUNDO ATRAVÉS DO OLFACTO - 2ª Parte

TRABALHOS DE APLICAÇÃO CIVIL

Busca de pessoas desaparecidas

Entre os trabalhos que têm sido seleccionados para mostrar a formação de cães especializados em buscas, o rastreio de pessoas desaparecidas, em fuga ou de qualquer outro tipo de seguimento e das suas pistas olfactivas, advém de um conceito integral de rastreio com cães.

É imprescindível utilizar espécimes sãos e bem dotados de instintos de caça e lúdicos. Devem ser fisicamente activos e resistentes, bem socializados, com bom temperamento e com muita tendência a licitar condutas defensivas.

A sensibilidade do guia e o conhecimento que deve ter do seu cão são factores determinantes do êxito final. Sempre consideraremos a equipa de busca e não o cão de busca já que as indicações que nos oferece cada animal só as poderá interpretar correctamente o seu guia uma vez que este será o único com condições para animar e confirmar o trabalho do seu cão.

A aprendizagem começa quando o animal se encontra altamente motivado pelo jogo e pela perseguição de objectos mordentes que satisfazem os seus instintos. O trabalho consiste em localizar a pessoa com quem tenha estado a jogar com ele com a finalidade de conseguir a sua recompensa.

No início, o ajudante coloca-se no ângulo de visão do cão, para posteriormente se esconder em locais fáceis e conhecidos. Progressivamente aumenta-se a distância que deverá efectuar o animal na busca, assim como os períodos de tempo transcorridos desde a altura em que se mostra a recompensa até à partida do cão na sua busca.

É necessário dispor de vários ajudantes, de ambos os sexos e de idades distintas e mudá-los continuamente. Isto não pode apresentar dificuldade já que se trata de trabalhos simples, isentos de risco e muito gratificantes. A função destes ajudantes limita-se a incitar o cão a que jogue com o motivador, esconderem-se, manterem-se em silêncio e esperar que o animal os encontre, momento em que sairão a jogar alegremente entregando o objecto da busca. Por sua parte, o adestrador ou guia, deverá dar a ordem escolhida para a busca logo que lhe dá a cheirar um objecto impregnado pelo odor do figurante ou o conduz ao local donde saiu sinalizando o rasto deixado por este.

O adestramento avançará quando, à ordem, seguindo as indicações do guia e sem a presença do ajudante – que permanecerá escondido – o cão siga a pista apresentada, que poderá ser, como dissemos, um objecto ou o indicativo do rasto deixado por ele.

Por último, esconder-se-ão os vários ajudantes e o cão deverá localizar o indicado pelo seu guia, seja através de um objecto ou pelo rasto deixado à partida. A prática contínua será um factor de êxito decisivo.

Igualmente, é importante ir complicando as situações progressivamente já que geralmente o trabalho se desenvolverá em condições difíceis e com numerosas pistas deixadas por outras pessoas que irão contaminar a que pretendemos seguir.

Deve considerar-se que, em determinadas condições, os sabujos conseguem rastrear uma pista de seis dias de antiguidade e durante cento e sessenta quilómetros.

Em trabalho de pessoas sepultadas pela neve ou por escombros, o cão não só trabalha pelo olfacto como deve intuir ou perceber a priori a possível ubiquidade da vítima.

Ensinar-se-á a ordem de escavar sem que isso represente nenhuma dificuldade já que podemos fazê-lo enterrando um pouco de comida e, sempre que damos a ordem, nós mesmos começamos a escavar.

Com este tipo de trabalhos, o cão começa a compreender que o objectivo da busca é salvar vidas humanas e acabará trabalhando com esta ânsia. Antes temos que analisar o trabalho que irá ser executado e motivar excepcionalmente o animal com a finalidade de o iniciar no salvamento.

Aqui os ajudantes deverão estar protegidos contra o frio e os escombros. Ao princípio, facilita-se a tarefa escondendo-se de uma forma superficial, para aumentar progressivamente a dificuldade.

Os animais devem ser escolhidos entre os adequados para suportar humidade a baixas temperaturas e, no caso de cão de catástrofe, recomenda-se que sejam de raças pequenas ou médias e supostamente, muito ágeis.

O cão de narcóticos e explosivos

Nalguns países das tarefas policiais as que são seleccionadas mais unidades caninas, devido ao tráfico de estupefacientes e à actividade terrorista, são as utilizadas na localização de substâncias e drogas proibidas assim como na detecção de artefactos explosivos utilizados por terroristas e mafiosos para o assassinato e a extorsão.

Geralmente inicia-se o adestramento com as mesmas premissas para a busca de pessoas desaparecidas mas introduzindo no objecto ou brinquedo, que se utilizará como estímulo do instinto de caça, uma pequena porção da substância que nos interesse que o cão localize.

Obviamente, a crença de que se droga os cães de narcóticos é uma falácia que só pode proceder da mais absoluta ignorância e que cai por terra com o seu próprio peso.

Com a estimulação do instinto de caça e o desejo de apanhar o brinquedo para jogar com o seu guia, cria-se no cão o suficiente desequilíbrio homeostático com o objectivo de produzir neste a necessária ansiedade de encontrar o brinquedo, dando assim satisfação ao seu instinto.

Devido à qualidade discriminativa do cão, pode-se trabalhar com distintas substâncias estupefacientes ou utilizadas para o fabrico de explosivos no mesmo módulo. Quer dizer, podem-se colocar distintas drogas no mordedor ou brinque-do porque, apesar de se apresentarem independentemente ou misturadas com outras substâncias neutras, aversivas ou de interesse alternativo, o cão as identificará com toda a segurança.

É importante evitar o contacto do cão com as substâncias devido à toxicidade de algumas delas para o qual se examinará o mordedor comprovando a inexistência de exsudação ou dispersão das mesmas.

A obediência que se deve exercitar com estes cães consistirá numa educação básica dando especial ênfase a uma posição de bloqueio. No cão de explosivos, insistir-se-á no sinal de detecção que deverá ser confusa devido à possibilidade da presença de terroristas no teatro de operações que poderão activar o mecanismo explosivo com a intenção de causar danos na unidade canina encarregue de comprovar a descoberta do engenho.

Rastreio de Cancros

Nos Estados Unidos, principalmente, estão já em plena aplicação programas de rastreios de algumas neoplasias dos pulmões, da próstata e melanomas, utilizando a acuidade olfactiva dos cães. Este tipo de rastreio tem várias vantagens em relação aos exames tradicionais: não são invasivos nem dolorosos uma vez que não é necessária a colheita de tecidos para análise, não expõe os pacientes a contínuos choques anestésicos, são incomparavelmente mais económicos e igualmente muito fiáveis.

Neste tipo de trabalho de adestramento o que vamos valorizar é a capacidade discriminativa do olfacto do cão. Sendo assim, vamos trabalhar com vários tipos de líquidos impregnados com vários odores. Normalmente esses líquidos odoríferos são apresentados ao cão em tubos de ensaio, sendo colocado num deles o produto que queremos que o animal marque e que o identifique como tendo um cheiro igual àquele que a neoplasia que estamos a analisar produz. Nessa altura, o cão é efusivamente recompensado com o seu brinquedo preferido.

Apesar de ser um trabalho muito simples de ensinar ao cão, é de uma importância vital para a evolução do diagnóstico do Cancro e já está em fase experimental a utilização deste método noutro tipo de neoplasias.

No próximo mês vamos falar da aplicação do olfacto canino no rastreio desportivo.

17/08/11

O MUNDO ATRAVÉS DO OLFACTO

Iniciamos este mês mais uma trilogia de artigos, neste caso, como os canídeos vêm o seu mundo através dos odores.

Uma correcta introdução ao adestramento da capacidade olfactiva do cão, para o desenvolvimento de trabalhos concretos, deve basear-se num perfeito conhecimento da fisiologia do olfacto canino. Como poderemos observar este sentido é a principal fonte de informação do cão. Dito de outra forma, os canídeos têm uma “visão olfactiva” do meio que os rodeia.

Se estabelecermos a comparação entre a capacidade olfactiva do cão e a do ser humano, sabe-se que a do primeiro pode ser entre dez mil e cem milhões de vezes superior dependendo da substância analisada. Assim como nós humanos dedicamos uma terça parte do nosso cérebro às funções da vista, o dos cães especializou-se no olfacto e tem aproximadamente vinte vezes mais neurónios olfactivos que o nosso. Os nossos instrumentos mais sensíveis são capazes de detectar uma bilionésima de grama de uma substância química mas, um sabujo, pode perceber à distância o que os referidos instrumentos não detectariam junto à mesma fonte de odor. Alguns factores orgânicos, como uma superfície olfactiva seis vezes superior à humana e a maior proporção de ar conduzido através da mucosa olfactiva, parecem ser decisivos nesta comparação.

Mas, não só deve ser considerada a magnifica sensibilidade olfactiva do cão como também devemos ter em conta, e assim o fará o adestrador com mais frequência do que por vezes se crê, uma das particularidades deste sentido canino que é a grande capacidade de descriminação. De facto, se tentarmos dissimular uma substância reforçante com outras similares ou distintas, a primeira será sempre detectada pelo cão distinguindo-a isoladamente das restantes.

Compreender o cão e a sua percepção do meio onde está inserido, deve passar sem dúvida por se considerar o olfacto como a referência sensitiva mais importante nos canídeos. Para a sobrevivência dentro de uma hierarquia e num território, nas condutas venatórias da alimentação, nas de cortejo e selecção sexual, criação e reprodução assim como na evitação da depredação, o sentido do olfacto evoluiu distinguindo-se como o mais importante receptor de informação disponível.

No adestramento, canalizam-se as qualidades olfactivas do cão para diversos fins e supõe uma ajuda extraordinária no caso de trabalhos civis de qualquer natureza. Neste momento ainda não foi possível fabricar algo que substitua o cão na detecção olfactiva, assim, a localização de humanos desaparecidos sepultados por neve ou escombros, de malfeitores ocultos, de detecção de drogas ou explosivos, de rastreio de vários tipos de neoplasias, etc., constituem algumas das utilidades em que o cão, assistido pelo seu olfacto, se converte em protagonista certo e indiscutível.

Os cães utilizados na caça são seleccionados, entre outras qualidades, devido à capacidade de utilizar o seu olfacto em benefício da tarefa cinegética.

Nos regulamentos desportivos para cães de raças denominadas de utilidade, guarda e defesa, os trabalhos consistem em identificar um objecto do guia, ou com odores humanos, entre outros similares, seguir um rasto previamente traçado por uma pessoa no campo, ou localizar um figurante emboscado. Estas são as tarefas mais significativas que se desenvolvem neste âmbito do adestramento.

Iniciação ao rastreio

Recordando conceitos analisados em artigos anteriores vemos que, quando o canídeo necessita de se alimentar, quer dizer, quando o instinto o obriga a deixar fluir os actos necessários para conseguir alimento, entram em jogo uma série de condutas orientadas ao êxito final do seu empreendimento: comer para sobreviver.

Para satisfazer o instinto de se alimentar, o cão deve realizar uma série de condutas complexas:

Primeiro passo será fomentar esse instinto de caça com jogos de perseguição, disputa e transporte. Podemos utilizar diversos objectos que o cão possa morder atados com uma corda que permitam que o cão os dispute através da perseguição e aprisionamento. Se, além disso, reforçarmos o instinto de caça com um pouco de fome, observamos na generalidade, um aumento da motivação em toda a sequência.

Posteriormente, e quando tivermos o cão bastante motivado para conseguir obter os objectos estimulantes que satisfaçam o seu instinto de caça, podemos começar a dirigir o adestramento no sentido desejado. Analisamos seriamente o objectivo e nos ajustaremos à sua consecução com paciência, racionalidade e sempre sustentando a aprendizagem nos estímulos positivos.

Se nos depararmos com um cão desinteressado teremos que analisar qual a origem da falta de vontade e se esta tem a ver com um baixo nível instintivo do animal, devemos descartá-lo para tarefas civis e, no caso do trabalho desportivo, optar entre conseguir um objectivo com muitas limitações e evitar os desportos que incluam as buscas e os rastreios.

No próximo mês vamos falar da aplicação do olfacto canino nos trabalhos de índole civil.

16/07/11

A INFLUÊNCIA DA "BELEZA" NAS RAÇAS DE TRABALHO E UTILIDADE

Terminamos este mês uma trilogia de artigos dedicados às raças de trabalho e utilidade com uma abordagem às consequências que a componente beleza têm nas referidas raças.

Beleza = “Propriedade das pessoas que nos induz a amá-las provocando em nós deleite espiritual” ou “Conjunto de qualidades cuja manifestação de sensibilidade produz um deleite espiritual ou um sentimento de admiração”.

Moda = “ Uso, modo ou costume que está em voga durante algum tempo ou num determinado país”

São definições gerais do léxico, intrinsecamente unidas, e que, no que refere à moda, estão a afectar, em maior ou menor grau as raças de trabalho.

Queremos deixar claro que fazemos referência ao criador de beleza como aquele que dá prioridade à estética na selecção e cão de beleza ao exemplar seleccionado através desta técnica já que se encontram especímenes em algumas raças que, seleccionados com os critérios ordenados por: saúde, carácter e estética, conseguem excelentes resultados em exposições de beleza.

Efectivamente são muito poucos os exemplares de beleza que oferecem um rendimento óptimo como “cães” em toda a acepção da palavra.

Desde logo, o ser humano encontra beleza noutro quando descobre qualidades que valoriza como boas e amáveis. Assim ocorre, racionalmente também, a respeito dos seres vivos. Mas, quando se admira um objecto ou coisa, estabelecer que se ama o dito objecto, não deixa de ter conotações subjectivistas. Deste modo, a maioria dos criadores que só seleccionam beleza, chegam a “adorar” a estética porque nunca estudaram a fundo o carácter do animal. Alguns juízes e responsáveis de Clubes caninos, devendo ser os garantes tanto de uma como de outra qualidade, chegam a valorizar somente determinadas linhas de beleza e os seleccionados nas exposições como sendo os mais “aptos”. Como consequência, raças tão imponentes como o Cão de Pastor Alemão tenha que ser diferenciada e compartimentada em Pastores Alemães de Trabalho e Pastores Alemães de Beleza. Para eles é endereçada a nossa humilde pergunta: Von Stephanitz criou uma raça, ou duas?

Se desvirtuarmos e não valorizarmos as provas de trabalho de origem alemã, estamos irremediavelmente a acabar com o último filtro de carácter e temperamento e, então, só ficará desta nobre raça uma foto numa antiga revista da especialidade.

Quantas vezes observamos grandes campeões de beleza que, mesmo à saída dos ringues, enfrentam possíveis situações que encaram como uma ameaça (como por exemplo, o esbracejar ou o bater do pé de algum espectador, que poderá estar junto ao ringue, com o intuito de testar em ambiente hostil um exemplar que até lhe pode interessar como reprodutor para uma fêmea sua) e, perante isso, rapidamente utilizam o mecanismo de fuga para resolver os seus problemas de medo?

Esta é uma das muitas situações explicativas do que se pode fazer com uma excelente raça quando se trata de a equiparar a outra, com o mesmo nome, que foi obtida para luzir nos ringues de beleza.

Analisemos o problema sob o ponto de vista etológico. As endogamias (criação intensiva em consanguinidade), principalmente as que estão ligadas a muitas raças, é possível que favoreçam uma elite de criadores que valorizam o factor crematístico (a área mercantilista de uma actividade) do mercado mas nunca uma espécie, mesmo que seja doméstica. A existência de alelos recessivos pode trazer como consequência, se cruzarem-se dois portadores, a fixação de um mau carácter cromossomático. Quem julga ou detecta essa tara? Podemos assegurar que essa tara não se tornará moda? Têm os criadores conhecimentos de genética para poder lidar conscientemente com estes problemas? Não tomaremos como doutrina o que realmente é uma mania de alguém não preparado mas com uma grande dose de poder fáctico?

A resposta está na natureza que dota as fêmeas, de quase todos os mamíferos, de um mecanismo de protecção do seu bem mais precioso, o óvulo. Um macho pode equivocar-se porque sobra-lhe esperma, mas uma fêmea só produz alguns óvulos nos seus ciclos estrais e, sendo assim, ela procurará os melhores pais para os seus filhos. Seleccionará caracteres de dominância e perfeição física (Robertson, 1979) ou a capacidade de sobrevivência e obtenção de recursos (Verner & Wilson, 1966).

Dado que a fêmea desta espécie não está em liberdade devemos ser nós que orientamos o seu Processo de Acasalamento tentando obter a maior variabilidade como elemento adaptativo e degrau evolutivo. A selecção do futuro semental deverá guiar-se pelos parâmetros, e por esta ordem: Saúde, Carácter e Estética, conceitos idênticos àqueles que em liberdade resumiríamos como Atitude.

13/06/11

RAÇAS DE TRABALHO E UTILIDADE

Publicamos este mês o segundo artigo de uma trilogia sobre cães de utilidade e trabalho. No número anterior debruçámo-nos sobre os aspectos da selecção de linhas de sangue de cães de trabalho e a sua importância na consecução dos objectivos, este mês iremos abordar mais em pormenor as raças que estão mais vocacionadas para executarem aquilo a que normalmente chamamos “trabalho”.

Ainda que o ponto principal a considerar seja prioritariamente o indivíduo, uma vez estudado o conceito de linha de sangue, pudemos fazer uma incursão nas características que supostamente terão as diversas raças. A sua morfologia condiciona a componente trabalho e o adestrador deve observá-la desde a perspectiva da funcionalidade. Por exemplo: um Pastor Alemão será tanto mais bonito quando a sua morfologia se ajuste à função para que foi criado e não porque alguém considerou que uma garupa anti-natural, por exemplo, é a ideal em termos estéticos (iremos falar neste ponto no próximo artigo).

Em todas as raças podem-se encontrar indivíduos aptos para um determinado trabalho. Assim, para tarefas de rastreio, detecção de narcóticos ou explosivos serão mais úteis os cães de caça do que outros. Neste artigo vamos analisar aquelas raças que se supõem globalmente mais capazes para a realização de múltiplas tarefas, quer dizer as raças “todo o terreno” que são utilizadas regularmente na Europa e na América tanto em utilidade como em desporto. Os aspectos morfológicos do standard não serão abordados uma vez que existe numerosa bibliografia a esse respeito e só serão tomadas em conta as qualidades encontradas em indivíduos seleccionados em linhas de sangue e trabalho.

O Cão de Pastor Alemão

O rei, sem dúvida, é o Pastor Alemão considerado em todo o mundo como o cão de trabalho por excelência. O seu marcado espírito gregário, instinto de guarda, capacidade de resolução, agilidade, resistência física e versatilidade converteram-no o cão de Von Stephanitz no modelo de cão de utilidade. Actualmente é seleccionado adequadamente nos Estados Unidos e em numerosas linhas de sangue europeias de trabalho. O Pastor Alemão Checo faz referência aos criados na Checoslováquia em tempos ligada politicamente à ex URSS. Ao serem seleccionados para trabalhos militares e policiais, o nível e qualidade dos ditos indivíduos, era semelhante aos criados nas melhores linhas de sangue alemãs com a vantagem de ser mais económica a sua aquisição para os restantes países europeus. Hoje em dia é normal fazer-se referência ao Pastor Alemão Checo quando se fala de Pastores Alemães de trabalho.

O Boxer

O Boxer é a segunda raça de trabalho na Alemanha e um vivo exemplo do que ocorre quando, geográfica ou culturalmente uma raça é orientada para o trabalho ou para companhia. Em Inglaterra ou nos Estados Unidos o Boxer é um cão de companhia em que só é tido em conta o seu aspecto dissuasório carecendo de capacidade de resolução e sendo relegado para uma condição meramente estética. Pelo contrário, na Europa Central e América do Sul está muito bem valorizado pela sua atitude e aptidões para o trabalho. Orientado pelo Deutscher Boxer Klub demonstra no desporto e, especialmente em tarefas de segurança civil, as suas numerosas capacidades. Especialmente indicado para conviver no seio de uma família, é um cão rápido, inflexível na defesa e protecção do grupo, com um forte instinto de presa, facilmente moldável e que necessita de escassos cuidados de manutenção.

O Cão de Pastor Belga Malinois

Uma variedade de Pastor Belga, o Malinois, representa actualmente uma sólida raça com uma excelente presente e um futuro imparável no âmbito desportivo. Na sua aparência não incide especialmente o efeito dissuasório e, portanto, o seu uso em tarefas civis se reduz todavia ao núcleo geográfico dos países francófonos onde sim é apreciado em toda a sua magnitude. Como a maioria dos pastores, é um cão territorial e gregário, com marcado instinto de caça e protecção. Geralmente são sensíveis ainda que de rápida recuperação e bastante rápidos. Estas qualidades beneficiam-no enormemente para o trabalho desportivo mas, nas tarefas civis, é limitado o seu uso aos exemplares mais corpulentos.

O Dobermann

O Dobermann, protagonista de lendas negras e objecto de numerosas incompreensões no passado, é actualmente uma raça em expansão. O facto de nas últimas duas décadas se terem feito assinaláveis progressos nas áreas do controlo do carácter e de algumas patologias que afectam a raça, principalmente a displasia coxo-femural, sempre sob vigilância apertada do clube Alemão da raça, o Dobermann Verein, proporcionou a que os princípios básicos de uma criação voltada para a funcionalidade tenham sido adquiridos pelos criadores de referência. Este trabalho já vem sendo feito há bastante mais tempo nos Estados Unidos que se empenharam verdadeiramente na selecção do carácter e é fácil encontrar linhas de sangue de trabalho bastante evoluídas e consolidadas. As suas características mais comuns são o seu enorme apego à família e especialmente ao seu dono, o seu aspecto dissuasório, rapidez, actividade interior e exterior, desconfiança para com estranhos e excelente capacidade de aprendizagem. Por tudo isso está muito bem qualificado para o desenvolvimento de múltiplas tarefas.

O Rottweiler

Não obstante o que há muito por fazer, desde o ponto de vista oficial, para o controlo do carácter, displasia e demais pontos em que se devem basear os parâmetros básicos da criação correcta e concentrada na funcionalidade da raça, ressalta nesta a capacidade de dissuasão na defesa e a força do seu instinto básico de protecção. Em desporto têm escasso êxito devido à corpulência que o criador selecciona nesta raça e a baixa capacidade de resolução derivada de uma reduzida actividade psíquica que demonstra este cão. Podem ser dominantes na hierarquia do grupo familiar e ainda com o seu dono. Esta agressividade por competência é mais relevante nos machos que ainda não tenham alcançado os quatro anos de vida já que, a partir dessa idade, o nível e testosterona começa um lento ciclo descendente tendo como consequência a diminuição do seu grau de dominância.

Ainda que outras raças como o Airedale Terrier, Schnauzer, Bouvier de Flandres, Podengos, Cães de Água, Boieiros e um comprido etc., se destaquem numa determinada área como especialmente versáteis, a cultura do cão de trabalho integral centralizou-se especialmente nas raças mencionadas nos parágrafos anteriores.

É necessário insistir na ordem crescente de importância dos factores a analisar
quando seleccionamos ou trabalhamos com cães:

1º - O indivíduo.
2º - Linha de sangue.
3º - A raça.

No próximo número iremos falar da influência da beleza nas raças de trabalho e de utilidade.

18/05/11

SELECÇÃO DE CÃES DE TRABALHO

Iniciamos este mês uma trilogia sobre cães de trabalho e utilidade.

Devido ao facto de esta espécie ter potencialidades em grande medida ainda por explorar – pensa-se que cerca de 80% das capacidades dos cães ainda estão por aproveitar – esta é uma área que tem ocupado bastante os investigadores que, aliados aos criadores e adestradores, uma vez que é de uma área multi-factorial que estamos a falar, têm obtido assinaláveis progressos nos últimos vinte anos.

O objectivo

No processo selectivo do cão, em que se deve orientar o Adestrador profissional ou o desportista, a questão principal é o conhecimento pleno do objectivo e a sua consecução com a máxima eficácia.

Nem sempre se poderá seleccionar o indivíduo objecto do adestramento já que, no caso do profissional, a maioria das vezes tenderá a adaptar o objectivo ao cão do cliente e o habitual nestes casos é a presença de limitações em exemplares que não foram escolhidos em função de uma utilidade determinada.

No exemplo seguinte queremos realçar a qualidade principal que caracteriza cada raça tendo sempre presente que a selecção estará sempre marcada pelo factor indivíduo e não pelo etnológico. À relação, que expomos de seguida, de objectivos segue-se outra de cães para que o leitor possa estabelecer uma inter-relação lógica que clarifique o que é exposto.

OBJECTIVOS

1.- Patrulha policial em parques públicos.
2.- Patrulha policial em zonas de grupos em conflito.
3.- Detecção de drogas e explosivos.
4.- Segurança privada na recolha e entrega de valores.
5.- Segurança privada em unidades industriais.
6.- Protecção de pessoa idosa.
7.- Efeito dissuasor em bancos e lojas de valores (joalharias relojoarias,
etc.).
8.- R.C.I.
9.- Condutor de invisuais.
10.- Assistência a pessoas com deficiência.


CÃES

A.- Pastor Alemão de trabalho. Indivíduo resoluto e gregário.
B.- Boxer. Psiquicamente estável e muito sociável com as crianças.
C.- Pastor Belga Malinois. Rápido e sensitivo.
D.- Dobermann. Baixa dominância em relação ao seu dono.
E.- Rottweiler. Muito territorial.
F.- Springer Spaniel. Activo e sociável.
G.- Retriever do Labrador. Boa índole, dócil e resoluto.

Ao ligar indivíduos com objectivos podemos cair na tentação de adaptar um mesmo exemplar a todos eles. Esta situação ocorre principalmente com o Pastor Alemão devido à sua fama de “4x4”, apesar de esta qualidade lhe ser reconhecida, não devemos esquecer que, por exemplo, o efeito dissuasório do Rottweiler é superior ao dos restantes e o contacto com crianças, no objectivo 1, faz com que o Boxer seja o animal indicado. No objectivo 6 o Dobermann pode ser o indicado já que necessita de pouca manutenção, assim como os objectivos 9 e 10 podem ser alcançados com um indivíduo de escassa agressividade, dócil e resoluto como é o caso do Retriever do Labrador.

Os exemplos anteriores levam-nos ao estabelecimento de três premissas:

1ª.- É imprescindível conhecer perfeitamente o objectivo.
2º.- Devemos analisar cuidadosamente o indivíduo quer física quer psiquicamente.
3º.- Vários indivíduos podem ser adaptados a um objectivo mas, o êxito na sua consecução, dependerá da selecção do cão ideal.

Outra forma de traçar a relação cão/objectivo pode ser expressada através da pergunta: O que é mais importante, o indivíduo ou o próprio objectivo? Dito de outra forma: Pretende-se que determinado cão alcance um objectivo específico? Ou: A consecução deste não é prioritária? Se se escolhe a primeira opção, as limitações do objectivo estarão ligadas às do cão. Na segunda, uma vez encontrado o animal ideal o propósito será alcançado plenamente se o método e os instrumentos forem os correctos.

Criação e selecção de cachorros

Um dos recursos do adestrador para conseguir obter exemplares de trabalho consiste em recorrer à sua própria criação. Tentará conseguir certas linhas genéticas dentro de uma determinada raça, que apresentem uma importante homogeneidade nos caracteres herdados que definem a atitude dos indivíduos que daí resultem.

O factor principal na criação, selecção do cachorro e do adulto, é a saúde. É o suporte que mediatiza o desenvolvimento dos seus instintos, capacidades psíquicas, aprendizagem e utilização.

Os reprodutores devem ser cães sãos e livres de problemas congénitos no seu genótipo. Os derivados do sistemas locomotor e ósseo podem ser os mais frequentes em raças de médio e grande porte. A epilepsia e outras patologias endógenas são, em grande parte hereditárias e devem ser afastados da criação aqueles exemplares que procedam de algumas linhas com este tipo de incidência. As fêmeas devem ser boas parturientes e zelosas na disponibilização dos cuidados parentais. Uma cadela equilibrada e segura transmitirá importantes qualidades aos cachorros que cuida mesmo que seja somente ama-de-leite. Os criadores de cães de trabalho sabem o importante que é o papel da fêmea no desenvolvimento dos padrões ontogénicos condutais do cachorro, para que ninhadas medíocres podem ser substancialmente melhoradas mudando-lhes a mãe, precisamente depois do parto, por uma adoptiva de qualidade superior.

Além disso, o criador tem a responsabilidade de manipular adequadamente os cachorros por duas razões principais. A primeira é que, com o devido conhecimento, melhorará neles certos factores de personalidade e a segunda é que irá progressivamente conhecendo, com detalhe, os traços mais importantes dos seus caracteres facilitando enormemente a sua posterior selecção.

No caso de se optar pela aquisição de um cachorro, deve-se assegurar que o criador observa as prevenções mencionadas confiando-se na sua profissionalidade, conhecimentos e rigor. Se não conhecer adequadamente as suas linhas de criação, deve estudar a genealogia dos cachorros recompilando toda a informação possível. Observar e estar permanentemente em contacto com a ninhada facilitará a eleição adequada mas não devemos esquecer que é o criador que deve orientar o comprador sobre o desenvolvimento das qualidades que conformam o carácter das suas linhas de criação.

É recomendável optar por pequenos criadores que por sua vez, sejam profissionais de adestramento ou praticantes de desporto canino já que, por um lado, estes têm mais possibilidades de prestar os cuidados e manipulações aos cachorros, que um criador que conta com várias ninhadas em simultâneo e, por outro o facto de trabalhar com este tipo de cães possibilita-o conhecer e valorizar as virtudes que deve ter um cachorro segundo o objectivo a que se destina.

Para a selecção do cachorro podem-se utilizar testes mais ou menos fiáveis, como é o caso do de Campbell ainda que, o criador profissional, conhecedor dos seus cães, deve dar a sua valiosa informação sobre cada animal.

Tendo em conta as análises ao cão realizadas em artigos anteriores, sugerimos alguns testes que nos podem auxiliar a conhecer melhor o cachorro que vamos escolher.

Sensibilidade à voz.
Chamada com o cão distraído.

Dureza física.
Apertando com os dedos polegar e médio o espaço interdigital da mão do cão com o objectivo de analisarmos o seu nível de resistência à dor.

Recuperação do stress.
Introdução de um cachorro numa caixa, voltamo-la e observamos a sua reacção ao tirá-lo

Territorialidade.
Observamos a reacção do animal perante a intrusão de um estranho.

Instinto de caça.
Seguimento de objectos em movimento.

Defesa.
Observamos o cachorro em luta com os irmãos.

Além disso e como já abordámos em artigos anteriores, devemos estudar detalhadamente o seu temperamento, sensibilidade física, capacidade de recuperação, capacidade resolução de problemas e conflitos, intrepidez, tenacidade, liderança e capacidade sensorial.

É imprescindível que no cachorro se preveja um animal são, bem estruturado para o trabalho, cheio de instintos, resoluto, relativamente duro e com boa capacidade de recuperação e aprendizagem.

Selecção de cães adultos

Entre as possibilidades com que conta o adestrador para atingir um objectivo, está a de obter um cão jovem ou adulto, com trabalho ou sem ele. Uma vez comprovado o seu estado de saúde, através de check-up veterinário, e sendo interessante a sua genealogia, analisar-se-á o exemplar da mesma forma que expusemos anteriormente, tendo sempre em conta que a evolução imediata do trabalho estará sempre condicionada pelas suas experiências anteriores.

Certos comportamentos serão estudados com mais realismo e determinação do que em cachorro já que a maturação actua sobre os padrões ontogénicos do comportamento. Mesmo assim, as anomalias que se detectam devem ser analisadas no contexto das experiências passadas.

Devemos igualmente interrogar-nos do “por quê?” da venda e ter em conta que pequenas limitações podem tornar inútil um exemplar para a consecução de determinados objectivos mas, apesar disso, ser útil para outros.

Outro factor aliado à idade é o preço. Um cão adulto já não é uma promessa mas uma realidade e esse facto tem que o seu custo. Se além disso já está adestrado ou iniciado numa determinada tarefa, encarece ainda mais o preço. A opção por este tipo de aquisição deve ser ponderada, tendo em conta todos os factores possíveis mas, principalmente e considerando o objectivo: Adaptação do cão a esse mesmo objectivo.

Análise do cão estranho

Sempre que o adestrador tem como missão formar um cão desconhecido, deve analisar as suas aptidões para decidir as possibilidades que oferece.

Para enquadrar o animal num correcto contexto de factores ambientais, depois se serem descartados possíveis problemas ou anomalias psicofísicas, deve-se estabelecer um protocolo pessoal em que sejam especificadas perguntadas que devem ser feitas ao proprietário, tais como: onde vive o cão (casa ou canil), relação com a família, tempo que lhe é dedicado, enfermidades, comportamentos anómalos, relação com outros cães, com desconhecidos, amigos e qualquer outra questão que o adestrador considere oportuna para a realização do seu trabalho.

No artigo do próximo mês iremos falar em pormenor das raças de utilidade e trabalho.

22/04/11

A PROFISSÃO "ADESTRADOR"

Um adestrador intitula-se “profissional” quando, no exercício das suas funções (alteração do comportamento dos cães através de processos ritualizados), aufere rendimentos e/ou honorários por essa actividade.

Tendo em conta que agrada ao adestrador o contacto com o cão e sendo este o objecto essencial do adestramento, deve ter a capacidade de lhe transmitir as suas sensações, suportá-lo no dia-a-dia, cuidar da sua higiene, nalguns casos também o transporte e, inclusivamente, controlar-lhe os comportamentos não desejados.

O ambiente das sessões de treino poderá ser, em muitos casos, adverso por ter de se trabalhar amiúdas vezes sob rigorosos dias de intempérie. O frio, a chuva, o calor e a sede são os “companheiros” sempre presentes nas sessões de trabalho. Pode dar-se o caso de, por vezes, se estar a adestrar um cão em protecção às três da manhã num armazém ou numa fábrica e às sete a efectuar um treino de rastreio. Nenhum adestrador profissional executa o tradicional “nine to five” da maior parte das profissões, como tal é essencial gostar-se muito do que se faz para poder aguentar o ritmo de trabalho que, nalguns casos, é altamente esgotante, mas também bastante aliciante.

Um factor fundamental a analisar é o de que o adestrador deve ser conotado como “o amigo do cão”. De um trato adequado, com respeito e lisura pelos proprietários, clientes e colegas depende em grande parte o futuro de um adestrador, sendo esta outra área importante da sua própria imagem pessoal. A seriedade, educação, honestidade e pontualidade, não sendo qualidades inatas é importante serem adquiridas e elaboradas pelo profissional, se quer que a sua actividade tenha êxito. Para o competidor desportivo a qualidade fundamental será a capacidade de trabalho em equipa.

As exigências físicas

A condição física pessoal derivada das condições externas e inerentes ao trabalho com o cão serão as ideais quando não interfiram com o desenvolvimento das variadas tarefas que se apresentam ou, pelo menos, permitam enfrentar, apesar das limitações físicas, os objectivos traçados. A resistência física é geralmente importante se considerarmos por exemplo, o caso se exercer a actividade de figurante no adestramento de protecção vestido com um fato integral e tiver que trabalhar vários cães. Se ao peso do fato juntarmos a luta com os animais debaixo de uma temperatura escaldante, chegamos à conclusão de que necessitamos de possuir uma condição física adequada quando trabalhamos em várias disciplinas. Apesar disso a coordenação mental, capacidade motora e o sentido espacial reduzirão a possibilidade de estragar um trabalho devido a falhas físicas.

Outro factor a ter em conta é o risco de sofrer arranhões, mordidas ou acidentes. O adestrador, especialmente quando executa o trabalho de figurante, tem o dever de assumir todas as contingências, exactamente como todos os demais profissionais assumem as inerentes ao seu ofício. Isto não quer dizer que sejam evitadas as protecções e se tomem as devidas precauções que recomenda o senso comum. É inevitável a primeira sensação de nos “sentirmos presas” quando enfrentamos pela primeira vez a boca e respectivos dentes de um cão. A preparação física e o conhecimento do animal ajudam-nos a reagir com a resposta adequada a cada situação.

As exigências mentais

Os adestradores com alguma experiência conhecem o importante que é a paciência nesta actividade. Ela pode levar a uma evolução totalmente desejável do trabalho com o animal, enquanto que a pressa irracional só acabará em maus desempenhos, perca de relação com o cão ou à não consecução de objectivos traçados.

A paciência e a tenacidade são as duas virtudes mais valorizadas nesta actividade. Não será um bom adestrador quem não for paciente nem quem desista ao primeiro revés. Também não o será se não for inteligente, bom observador, acutilante e que não saiba raciocinar fria e logicamente. Não deverá igualmente desistir à primeira mordida de algum aluno mais impulsivo. A capacidade de observação permitirá ao adestrador apreciar adequadamente os factores que rodeiam a evolução do trabalho quotidiano.

Uma boa dose de resistência psíquica porá a salvo as frustrações quotidianas com que se depara o adestramento. Deve-se enfrentar os problemas da maneira mais racional possível dando, a cada um deles, a resposta mais adequada.

Por último deve-se insistir uma vez mais, em manter a liderança absoluta na estrutura hierárquica do binómio adestrador-cão.

Ética Profissional

A partir do momento em que uma pessoa é qualificada como Adestrador e começa a cobrar os seus serviços, está a actuar como um Profissional. Como em todas as profissões, nesta também deve existir um código deontológico e uma ética profissional. Por não estar regulamentada, esta profissão presta-se a todo o tipo de oportunistas, moralmente mal formados e charlatães.
Em todas as profissões encontramos pessoas mais ou menos qualificadas e que se intitulam de “profissionais”. A diferença entre o bom profissional e o charlatão radica na qualidade dos seus trabalhos, finalizados com êxito, dentro do respeito à ética da sua profissão.
Por ser uma profissão relativamente nova, faz com que a fiscalização do trabalho, por parte do cliente, seja quase nula. A transparência no processo de adestramento, de modo a evitar abusos e enganos, está sujeita à moralidade do profissional.
Se o adestrador possui um conceito claro do que é a moral, só aceitará um trabalho que seja capaz de realizar e que esteja dentro do que aprendeu na sua formação, rejeitará as tarefas para as quais não se sinta capacitado e não terá problemas em mostrar as limitações reais do animal e as do trabalho que vai desenvolver assim como as possibilidades de êxito.
Outro pecado capital é a crítica maldosa a outro colega de profissão. Quando se procede desta forma ninguém fica a ganhar, perdem, isso sim, todos os adestradores que consideram esta tarefa suficientemente digna para investir nela toda a sua vida.
Finalmente, o que o cliente espera de um profissional é que o seu cão se converta num amigo obediente, amável e educado, num guardião e defensor da sua família, companheiro de vigilância e patrulha, participante em salvamentos, olhos dos invisuais, consolo e ajuda na invalidez e velhice, etc.

13/03/11

O ADESTRADOR E A SUA FORMAÇÃO

Se entendermos o conceito de adestramento como “o processo utilizado para a canalização das qualidades do cão em direcção a um objectivo”, podemos definir o adestrador como sendo o “director do processo”.
É evidente que a qualidade do adestrador depende de uma série de factores, inter-relacionados entre si, como a formação, inteligência, capacidade física, sensibilidade com o animal e dedicação. Sobretudo, dos objectivos para o qual se proponha e se tem capacidade para os atingir.
Aquele que se limita a formar cães numa única disciplina poderá chegar a ser especialista nessa área mas, as suas qualidades pessoais não estarão à altura das exigências que derivam de objectivos mais complexos, onde entram em jogo factores de superior precisão, funcionalidade ou execução.
O Profissional de Adestramento deve cultivar uma virtude sem a qual, jamais chegará a ser considerado como tal. Referimo-nos à “humildade”. Ela leva-nos a sentirmo-nos continuamente aprendizes pois, devido a ela, temos a consciência que todos os dias são-nos colocadas questões novas para o qual necessitamos de respostas também inovadoras. Não deveremos ter problemas em pedir ajuda a quem sabe mais numa dada área, procurar as referidas respostas onde elas possam estar, livros, artigos, seminários, workshops, etc. Não podemos esquecer que no trabalho com cães há poucas regras fixas e, quase tudo depende da formação que possamos adquirir numa escola, em cursos, trabalhando com os formadores e em grupos de trabalho. Esta humildade deve-nos inibir da pressa que temos em sermos “experts”, fechando assim as portas à aprendizagem.
Como em todas as profissões, existe nesta uma deontologia que nos aconselha a ser humildes e encarrega-se de nos afastar dos seus “pecados capitais”. A vaidade, o desrespeito pelos outros e a deficiente capacidade para reconhecer as lacunas no conhecimento que se tem do mundo canino, diferenciam o autêntico especialista, respeitado, com provas dadas e sempre disposto a adaptar-se e a evoluir, do mau profissional que pensa que já sabe tudo e não necessita de se reciclar.
O profissional com falta de ética e de humildade jamais está aberto às inovações científicas que têm aparecido com regularidade na área da aprendizagem canina. Este tipo de profissional não toma por verdadeira a frase: “quanto mais estudo, mais consciente estou do que me falta aprender”.

Vejamos agora os canais de aprendizagem que os adestradores dispõem até que possam ser considerados como tal.
Há alguns anos os conhecimentos que possuía um profissional baseavam-se, quase exclusivamente, na sua própria experiência. O seu método era o da tentativa e erro e, se tivesse sorte, partilhava o trabalho e experiências com outro colega. Se juntarmos a isso a baixa estima social que, no nosso país, despertava o canicultor, não é difícil imaginar que, para ter um certo domínio sobre a profissão, o adestrador tivesse que sacrificar a família e a sua vida social.
Apesar de a pré-história do adestramento ainda não estar muito distante, em Portugal começa a ter-se acesso a um ensino sério e regrado, se bem que, dependendo do Centro de Formação, podem-se alcançar vários níveis.
Como é lógico, neste artigo pretendemos “informar” portanto, explicaremos os prós e contras dos canais de aprendizagem mais usuais:

1. O autodidacta


Infelizmente, este meio de aprendizagem, que é ainda o que mais predomina nos nossos adestradores profissionais, tem frutificado nesses pseudo-adestradores à custa de estropiar cães e arruinar as suas vidas e tenham igualmente feito escola como base do adestramento. Na grande maioria dos casos não passam de medíocres profissionais acompanhados de numerosas limitações.

2. O “treinador”

O canal de aprendizagem utilizado por estes profissionais que se intitulam como “treinadores de cães” tem, na sua grande maioria, origem nas companhias cinotécnicas das forças de segurança. Estes elementos possuem formação específica nas áreas da defesa civil, ou em busca e salvamento, ou na detecção de drogas e armas e operam com cães “formatados”, praticamente desde a nascença, para executarem essas actividades. Não completando esses conhecimentos com outros de índole mais geral canalizados para a actividade de companhia, que é para aquilo que os “nossos” cães estão vocacionados, dificilmente conseguirão atingir um nível elevado de capacidades no adestramento básico e social de um cão normal.

3. Os grupos de trabalho

Importado da Alemanha, a sua estrutura social é a de um grupo de adeptos que se reúnem não só para trabalharem o cão, mas para fazer vida social com aqueles que tem a mesma paixão. São normalmente organizados por Clubes de Raça e, habitualmente, não existe monitor com formação, sendo alguém experiente no grupo que, por amizade, ensina os outros. Devido à paixão e entrega, os resultados são frequentemente bons limitando-se os objectivos a provas de obediência e sociabilidade.
Transposto para o nosso País, este modelo quase nunca deu frutos como na origem. A nossa idiossincrasia de povo Latino se encarregou de arranjar desculpas para a nossa falta de interesse e motivação em frequentar esses grupos. Por vários motivos, mas o principal é o facto de no inverno ter que se trabalhar debaixo de todo o tipo de intempéries.
De qualquer forma, os grupos de trabalho e, na maioria dos casos, são bons locais para obter um o certo nível de formação, principalmente a aprendizagem de trabalho em equipa.

4. Escolas de Formação

É uma realidade nova em Portugal mas, do que conhecemos noutros países, possuem uma inquestionável qualidade e sem comparação com todos os outros canais de aprendizagem.

A amplitude de conhecimentos multidisciplinares, ministrados em módulos teóricos e práticos, conferem aos frequentadores uma bagagem de conhecimentos que lhes permite atingir qualquer objectivo que se proponham no âmbito do adestramento canino. Pode servir como exemplo, uma vez que é aquele que conhecemos melhor, o Centro Canino de Vale de Lobos que, através do seu Departamento de Formação, ministra Cursos de Formação de Monitores em Adestramento Científico Canino, tanto nos seus formatos normal como intensivo que, como o nome indica, utiliza os mais modernos avanços científicos na aprendizagem animal na persecução dos seus objectivos que é o de formar profissionais em três componentes: técnica, teórica e prática.
Também está muito em voga no nosso país a disponibilização de Cursos de uma semana onde se aproveita para abordar toda a área do adestramento, comportamento, primeiros socorros e as várias disciplinas do desporto canino.
Tem-se igualmente vindo a massificar os seminários de fim-de-semana e os workshops de um dia mas, nestes casos, são dedicados a um tema específico.

Com este artigo quis elucidar todos os proprietários de cães do que é e do estado desta nobre e dignificante actividade profissional. Cabe aos interessados informarem-se, visitarem várias escolas, compararem os métodos de adestramento, analisarem os monitores, inquirirem, se for caso disso, junto destes se possuem algum certificado passado por alguma escola de formação, etc., e depois, na posse de todos estes elementos, decidirem o que é melhor para o seu amigo de quatro patas.

08/02/11

O CARÁCTER, O TEMPERAMENTO E AS QUALIDADES INTRÍNSECAS DE UM CÃO

2ª Parte

O TEMPERAMENTO

Os seguintes traços de carácter têm uma particularidade comum a todos: que é aquilo a que vulgarmente os adestradores chamam “Força de Vontade”, “Tenacidade”, “Alerta”, “Disponibilidade para o Trabalho”, “Irreverência”, etc. Por isso decidimos separá-los das outras características que compõem o carácter, e tratá-los nesta segunda parte do artigo dedicada ao Temperamento canino.

Tempera. Esta definição contempla a intensidade e velocidade de resposta ante estímulos externos de qualquer natureza. Não se deve aplicar este termo como sinónimo de carácter e muito menos de agressividade. Tal como sucede com a sociabilidade e a docilidade, a educação canina permite acrescentar temperamento aos espécimes adestrados.
Vigilância. Representa a particularidade sensitiva do cão para pressentir algo anormal e potencialmente perigoso, ameaça para ele como individuo e/ou como integrante na matilha (equivalente à família humana). Por vezes associada a grande sensibilidade olfactiva e auditiva dos canídeos, a aptidão de vigilância, tipo sexto sentido que permite pré-advertir grandes calamidades naturais – terramotos, inundações, incêndios, tempestades – e resolver antecipadamente a guarda e protecção do grupo (congéneres, pessoas e animais a seu cuidado.
Valentia. No campo do comportamento canino, a valentia descreve a capacidade de resistência a uma acção ou factor externo desagradável ou agressivo. É condição indispensável para guarda.
Coragem. A palavra “coragem” sintetiza uma convergência de impulsos para enfrentar positivamente situações de risco, conhecidas ou não, que possam afectar a integridade física do indivíduo ou do seu grupo comunitário. Esta disposição de luta surge como resposta directamente proporcional à sociabilidade e ao temperamento de cada um, sem se contrapor à docilidade. A coragem opõe-se ao sentimento de fuga – instinto personalista – à custa do sacrifício pessoal e, por arrasto, a defesa do conjunto (da matilha ou da família) o exime do medo e considerações individualistas.
Agressividade. Nos cães interessa-nos uma reacção física e activa – mas de modo proporcionado e sem exageros – ante um suposto perigo (ameaça territorial, dos seus congéneres e mesmo de todos os seres ao seu cuidado). A agressão obedecerá sempre a um motivo. Nos cães selvagens este comportamento é primordial para obter alimento e, consequentemente, está relacionado com o instinto predatório e a sobrevivência do mais apto.
Possessibilidade. Diz-se que um cão é possessivo quando, naturalmente, está predisposto a converter-se dono de qualquer coisa ou de alguém. Deriva – por sublimação – do comportamento predatório dos cães selvagens. O apropriar-se de seres ou objectos manifesta-se como expressão de competitividade e afirmação do espaço apreendido.
Combatividade. Este conceito alude à capacidade de lutar com vigor contra um estímulo exterior negativo mal este se manifesta. Verdadeiro “resorte” emocional, a combatividade há-de expressar-se com uma firme atitude de luta que, nalguns casos são encarados como esquemas ritualizados de combate e, desencadeando-se a agressão aberta. Este conceito distingue-se de outras formas de briga porque utiliza os sinais atávicos da espécie (posição da cauda, orelhas, pelo eriçado na cruz, etc.). Autores como Enzo Vezzoli sustentam que frequentemente a combatividade se associa e inclusivamente tem origem na possessibilidade.

QUALIDADES INTRÍNSECAS DE UM CÃO

Sensibilidade e Recuperação

A sensibilidade e a capacidade de recuperação são factores psicofísicos do animal que o adestrador deve perceber de forma imediata testando ou simplesmente, trabalhando com o cão. A sensibilidade física ou psíquica e o tempo que o cão leva a recuperar de uma situação de conflito com o seu adestrador, são os factores determinantes da intensidade com que este poderá aplicar a pressão ou o castigo.
A pressão é entendida como: “força exercida sobre o cão, antes ou durante a ordem, para conseguir execução e rapidez”. O castigo ou estímulo aversivo é “a consequência negativa que recebe o animal como resultado de uma resposta inadequada”. Em termos coloquiais o castigo será: a correcção física ou psíquica que o cão recebe perante uma falta. Como dizíamos antes, é muito importante conhecer o grau de sensibilidade e a recuperação de cada indivíduo. Há cães que só com um olhar do guia se sentem, para eles o castigo consiste numa voz num tom mais áspero. Ao contrário, um cão duro necessitará uma pressão ou um castigo mais expedito.
Há quem compare a sensibilidade do animal à sua qualidade. Realmente estes conceitos não estão unidos já que há cães duríssimos não aptos para o trabalho assim como há animais sensíveis de uma qualidade extrema. Portanto, é o adestrador que deve adaptar-se à sensibilidade do cão e não o cão ao adestrador.

Intrepidez

Qualidade que representa o nível de arrojo ou valentia ante determinados problemas ou obstáculos. Não devemos confundir este conceito com o da conduta defensiva. Um cachorro de cinco meses pode ser muito intrépido sem apresentar atitudes defensivas.
Para observar a intrepidez de um cachorro colocamo-lo em cima de uma mesa alta. Quando o chamamos podemos obter uma referência de conduta. No caso de um cão adulto, colocamo-lo num dos lados de uma vala e nós no outro, então observamos como ele resolve o problema.
É importante que testemos frequentemente o cão em situações novas para ele. A espontaneidade permitirá, dessa forma, uma análise do comportamento do cão uma vez que a aprendizagem não permitirá introduzir um factor de variabilidade.

Tenacidade

Capacidade de resistir ao abandono de uma actividade que apresenta expectativas de satisfazer um instinto. Portanto, a tenacidade está muito ligada ao nível do instinto invocado.
Como exemplo podemos colocar uma bola à vista de um indivíduo com o instinto de caça bastante desenvolvido. O animal tomará uma atitude expectante e, se lhe impedimos o acesso, teremos o indicador da sua tenacidade controlando o tempo que leva a tentar obtê-la.

Temperamento

É a capacidade de adaptação e resposta orgânica do animal perante sucessos inesperados. As respostas de inquietação, surpresa excessiva ou, inclusivamente medo, quando algo se modifica de forma repentina, no âmbito da sua percepção sensorial, denotam, em maior ou menor grau, uma possível carência de Temperamento no cão. Neste caso, descartamos os modelos de conduta associados ao G.A.S. (Síndrome Geral de Adaptação) ou as reacções gerais de emergência, que leva-nos a supor uma deficiência no seu temperamento.
Para observarmos o nível de temperamento de um indivíduo podemos efectuar um disparo, introduzir um objecto novo e chamativo no seu meio envolvente quando está ausente ou simplesmente, deixar cair um objecto metálico que produza um som alto quando o cão estiver distraído.
Estes não são mais que alguns exemplos mas, mão há dúvida que o temperamento pode testar-se de diversas formas.
Um cão que lhe falte temperamento pode fazer-se insensível a um estímulo concreto, por um processo de habituação mas, noutro contexto aparecerá esta deficiência revelando assim as suas limitações.

Resolução

É a capacidade de dar solução a um problema que se lhe apresenta num contexto desconhecido. Está estreitamente ligado à “inteligência” do animal. Esta qualidade é fácil de reconhecer em cachorros e jovens que não tenham sido condicionados em excesso. Para testar esta qualidade nos cães deve-se procurar um local afastado para evitar a inibição dos mecanismos do animal ante problemas em contextos novos. Para testar um cachorro pode-se utilizar um recinto vedado e, depois de um passeio, deixa-se solto e à vontade e chamamo-lo do outro lado da vedação enquanto observamos a sua reacção.

Até aqui temos analisado o cão de forma genérica tendo em conta as virtudes e qualidades que o adestrador deve considerar quando selecciona um cão para uma determinada função ou quando testa um animal que lhe é entregue para ser formado.

Do que foi dito neste artigo deve deduzir-se que não existem dois indivíduos iguais e portanto, a manipulação e o método a seguir no processo de adestramento, deverá ajustar-se a uma análise individual.
Devemos ter em conta aqueles factores de variabilidade que alteram os resultados do estudo. Enfermidades, doenças, fases críticas do desenvolvimento psicofísico, hostilidades ambientais, traumas muito recentes e inclusivamente, instintos primários satisfeitos, distorceram em menor ou maior grau, a percepção do analista.
Com o estudo e a experiência aprofunda-se o conhecimento do cão e do seu meio envolvente evitando, desta forma, surpresas e sobretudo, reduzindo ao mínimo, o factor sorte.

12/01/11

O CARÁCTER, O TEMPERAMENTO E AS QUALIDADES INTRÍNSECAS DE UM CÃO

1ª Parte

Vamos iniciar uma série de dois artigos sobre o carácter, o temperamento e as qualidades dos cães. Apesar de serem três termos que poderão ser considerados como sinónimos, iremos ver, ao longo dos artigos, que devem ser compartimentados em conceitos diferentes, uma vez que, quaisquer uns deles apresentam traços de personalidade que os caracterizam, bastantes distintos.

O CARÁCTER

Da mesma maneira que cada cão possui uma estrutura anatómica diferente, a estrutura psíquica e mental é igualmente distinta.
O carácter é produto da carga genética, das experiências vitais e da aprendizagem. Pode-se dizer que o carácter é herdado na sua componente genética, é adquirido na sua componente ambiental e é moldado através da aprendizagem.
Cada uma das vivências do cão trabalha sobre a matriz rudimentar da personalidade do cão de maneira a que, quanto maior for o estímulo, com maior força se fixarão certo tipo de respostas.
As experiências adquiridas durante os primeiros meses de vida influenciam de forma determinante o carácter do cão. A maneira como o cachorro aprende a resolver conflitos, marcará indelevelmente a sua futura personalidade.
Também, apesar de em menor grau, influenciam o carácter as experiências adquiridas na juventude. A prova disso é que, quando se obriga o cão a esquecer associações simples ou sequências complexas de comportamentos, anulam-se com maior facilidade as que se estabeleceram durante a fase intermédia de vida do que aquelas que se fixaram no decurso dos períodos de “imprinting” ou de socialização.
Assim, para realizar um correcto adestramento é importante conhecer o carácter particular do cão que vamos trabalhar, e para isso há que considerar os dois planos em que se desenvolve o crescimento mental: conhecimentos adquiridos e herança genética.
Que carácter terá este cão? É a pergunta que colocam todos os adestradores quando iniciam a formação de qualquer exemplar. É certo que a manipulação e o desenvolvimento do trabalho irão diluindo muitas incógnitas mas, uma análise precoce é fundamental para uma correcta planificação do referido trabalho. Saber analisar cada cão e a resposta do seu organismo, perante uma determinada situação, não é um dom de alguns adestradores mas sim fruto do conhecimento, da observação e do estudo intrínseco do exemplar em causa.
A pior consequência, quando se desconhece o carácter do cão, é a sublimação do método fazendo depender só e exclusivamente dele os resultados. Esta situação provoca numerosos fracassos considerando “não aptos” os indivíduos que não alcançam os objectivos. Em contrapartida, se a eleição do método se basear no conhecimento do cão e se for ajustada, tanto a ele como ao objectivo, o número de “inaptos” será drasticamente reduzido. Do exposto se depreende que, a selecção de exemplares para adestramento de alto nível, naqueles que investiremos inúmeras horas de trabalho, deve estar condicionada a um exaustivo conhecimento do animal.

Iremos de seguida analisar os comportamentos instintivos e os traços de personalidade ligados ao carácter do cão, que o adestrador deve valorizar quando decide iniciar um trabalho de adestramento sério e produtivo.

Análise dos comportamentos instintivos

Pode-se definir o instinto como: “impulsos da estrutura interna do animal que se manifestam em forma de comportamento”. Tanto o instinto como a aprendizagem são os garantes da Adaptação e da Evolução.
Nos animais que têm uma vida relativamente longa e especialmente os que pertencem a espécies altriciais (que recebem prolongados cuidados parentais) como é o caso do cão, os comportamentos instintivos vão aparecendo de forma gradual e o indivíduo tem que aprender a controlá-las. A aprendizagem e o instinto constituem, deste modo, a essência do comportamento e, a combinação entre ambos faz com que discriminar os factores genéticos instintivos da aprendizagem, seja mais difícil do que possa parecer. Se tomarmos como exemplo do que foi exposto o comportamento da vespa cavadora veremos a diferença entre espécies precociais e altriciais assim como a diferença entre instinto e aprendizagem.
Este insecto leva a cabo somente numas semanas de vida, toda uma sequência de condutas como a alimentação, a competição e eleição de parceiro, a “decisão de lutar como o dono de um ninho ou construir o seu próprio, a eleição da presa e sua captura, a postura dos ovos e a sua morte. Se juntarmos a tudo isso que os seus pais morreram no verão anterior, deduziremos que o comportamento instintivo prevalece sobre qualquer factor de aprendizagem.
O cão como espécie altricial está muito ligado nos seus comportamentos, aos instintos e à aprendizagem que falámos anteriormente. Por meio da aprendizagem associativa e do condicionamento operante a que o submetemos veremos desenvolvidos e ampliados os seus padrões de conduta individuais que, de não serem manipulados, se limitariam à resolução de problemas derivados da sobre-vivência e da reprodução. Ainda assim o conhecimento dos instintos mais importantes que desenvolve e a adequada valorização dos comportamentos associados a eles conformam o pilar base para compreender o animal.

Traços de personalidade ligados ao carácter

Um dos erros mais frequentemente cometidos ao falar do comportamento dos cães, do qual nem os cinólogos escapam, é o emprego de termos que correspondem a outros âmbitos e cujo significado não pode empregar-se na etografia canina. Assim, é comum utilizar-se a antiga classificação de Hipócrates definindo “ (cães de) carácter excitável, tranquilo, agressivo ou temeroso”, o uso do vocábulo “temperamento” para definir agressividade, ou confundir guarda com defesa, etc. Na cinofilia moderna, os estudos têm precisado muito bem a terminologia correcta e, independentemente do autor ou técnico, sem ambiguidades, é facilitada assim, a compreensão do comportamento canino.
Nas relações que o cão tem com o meio ambiente – ocupado por ele, e consequentemente, por outros animais e pelo homem, tanto fazendo parte do grupo sócio-expressivo ou estranho a este – evidenciam-se, de modo notório, dez comportamentos naturais, três deles ligados ao carácter: a docilidade, a sociabilidade, a curiosidade e sete eminentemente ligados ao temperamento: a vigilância, o temperamento, a valentia, a possessibilidade, a combatividade, a agressividade e a coragem.
Qualquer destes comportamentos exteriorizados podem ser mais ou menos acentuados segundo a raça a que pertence, potenciando-se entre si ou contra-pondo-se (e até anulando-se), constituindo assim, uma espécie de Bilhete de Identidade das suas aptidões naturais.
…Aptidões e faculdades a ter em conta em qualquer Plano de Adestramento, pois - como disse o Etólogo Enrique Lerena de la Serna – “a educação não pode modificar os fundamentos inatos do carácter” portanto, o adestramento para certas funções é desaconselhável em raças cuja memória genética é inexistente, mas ainda que existindo concordância condutal, carecem as devidas capacidades morfológicas (tamanho insuficiente; particularidades corporais que os impedem desempenhar as tarefas solicitadas sem riscos maiores; pouca adaptação climática; etc.), em suma, não recomendáveis profissionalmente.
Ainda que com um treino específico, quiçá, potencie algumas destas faculdades e, inversamente, exija um mínimo noutras das aqui mencionadas, os comportamentos básicos relativos ao carácter do cão adestrável são os que se seguem:

Docilidade. Tem a ver com a facilidade do espécimen canino em aceitar o homem como seu superior hierárquico. É colocado, num nível inferior na escala da matilha, mas não na condição de escravo temeroso e submisso. Por cão dócil entende-se aquele que aceita o humano como guia equivalente ao líder dos grupos caninos selvagens. A docilidade, pois, não será confundida com timidez nem medo do castigo; parte da confiança, da entrega natural e benéfica a um mesmo projecto, não anula a índole mas sim amplia-a.

Sociabilidade. O cão, animal gregário, só se expressa completamente quando integrado em comunidades; daí, um exemplar sociável ganha pessoalmente e ganha a sua espécie. Deste modo, insere-se com naturalidade dentro do âmbito propício, comunicar-se sem excitação ou impaciência extremas é inerente ao impulso genético de domesticidade que se distingue da do seu primo Lobo. A falta de sociabilidade manifesta-se com temor, ansiedade e inquietação. Sociabilidade e docilidade são dois comportamentos de base que se desenvolvem no cachorro no segundo mês de vida, e autores como Daniel Torora dividem a dita capacidade social em: para com a família, para com as crianças e respeito para com os estranhos da casa; Humel agrega a disposição para outros congéneres e a sociabilidade com distintas espécies (gatos, aves, cavalos, vacas, etc.).

Curiosidade. Há um axioma comprovado que diz: “não vê nem entende o mundo aquele que não seja curioso, quem não tenha sede de indagar, procura do conhecimento (condição prévia de toda a aprendizagem). Também para o cão curiosidade é o desejo, o prazer e a faculdade de interessar-se – naturalmente – por tudo o que o circunda, fundamentado na vontade em explorar territórios e descobrir ambientes, problemáticas e resoluções novas, imprevistos, acrescentando a conduta instintiva com o imprinting – no dizer dos etólogos – e que definem o comportamento adquirido, donde a curiosidade joga um papel muito importante. A presença desta qualidade – em minha opinião – é primordial para o êxito de todo o adestramento.