Translate

12/01/11

O CARÁCTER, O TEMPERAMENTO E AS QUALIDADES INTRÍNSECAS DE UM CÃO

1ª Parte

Vamos iniciar uma série de dois artigos sobre o carácter, o temperamento e as qualidades dos cães. Apesar de serem três termos que poderão ser considerados como sinónimos, iremos ver, ao longo dos artigos, que devem ser compartimentados em conceitos diferentes, uma vez que, quaisquer uns deles apresentam traços de personalidade que os caracterizam, bastantes distintos.

O CARÁCTER

Da mesma maneira que cada cão possui uma estrutura anatómica diferente, a estrutura psíquica e mental é igualmente distinta.
O carácter é produto da carga genética, das experiências vitais e da aprendizagem. Pode-se dizer que o carácter é herdado na sua componente genética, é adquirido na sua componente ambiental e é moldado através da aprendizagem.
Cada uma das vivências do cão trabalha sobre a matriz rudimentar da personalidade do cão de maneira a que, quanto maior for o estímulo, com maior força se fixarão certo tipo de respostas.
As experiências adquiridas durante os primeiros meses de vida influenciam de forma determinante o carácter do cão. A maneira como o cachorro aprende a resolver conflitos, marcará indelevelmente a sua futura personalidade.
Também, apesar de em menor grau, influenciam o carácter as experiências adquiridas na juventude. A prova disso é que, quando se obriga o cão a esquecer associações simples ou sequências complexas de comportamentos, anulam-se com maior facilidade as que se estabeleceram durante a fase intermédia de vida do que aquelas que se fixaram no decurso dos períodos de “imprinting” ou de socialização.
Assim, para realizar um correcto adestramento é importante conhecer o carácter particular do cão que vamos trabalhar, e para isso há que considerar os dois planos em que se desenvolve o crescimento mental: conhecimentos adquiridos e herança genética.
Que carácter terá este cão? É a pergunta que colocam todos os adestradores quando iniciam a formação de qualquer exemplar. É certo que a manipulação e o desenvolvimento do trabalho irão diluindo muitas incógnitas mas, uma análise precoce é fundamental para uma correcta planificação do referido trabalho. Saber analisar cada cão e a resposta do seu organismo, perante uma determinada situação, não é um dom de alguns adestradores mas sim fruto do conhecimento, da observação e do estudo intrínseco do exemplar em causa.
A pior consequência, quando se desconhece o carácter do cão, é a sublimação do método fazendo depender só e exclusivamente dele os resultados. Esta situação provoca numerosos fracassos considerando “não aptos” os indivíduos que não alcançam os objectivos. Em contrapartida, se a eleição do método se basear no conhecimento do cão e se for ajustada, tanto a ele como ao objectivo, o número de “inaptos” será drasticamente reduzido. Do exposto se depreende que, a selecção de exemplares para adestramento de alto nível, naqueles que investiremos inúmeras horas de trabalho, deve estar condicionada a um exaustivo conhecimento do animal.

Iremos de seguida analisar os comportamentos instintivos e os traços de personalidade ligados ao carácter do cão, que o adestrador deve valorizar quando decide iniciar um trabalho de adestramento sério e produtivo.

Análise dos comportamentos instintivos

Pode-se definir o instinto como: “impulsos da estrutura interna do animal que se manifestam em forma de comportamento”. Tanto o instinto como a aprendizagem são os garantes da Adaptação e da Evolução.
Nos animais que têm uma vida relativamente longa e especialmente os que pertencem a espécies altriciais (que recebem prolongados cuidados parentais) como é o caso do cão, os comportamentos instintivos vão aparecendo de forma gradual e o indivíduo tem que aprender a controlá-las. A aprendizagem e o instinto constituem, deste modo, a essência do comportamento e, a combinação entre ambos faz com que discriminar os factores genéticos instintivos da aprendizagem, seja mais difícil do que possa parecer. Se tomarmos como exemplo do que foi exposto o comportamento da vespa cavadora veremos a diferença entre espécies precociais e altriciais assim como a diferença entre instinto e aprendizagem.
Este insecto leva a cabo somente numas semanas de vida, toda uma sequência de condutas como a alimentação, a competição e eleição de parceiro, a “decisão de lutar como o dono de um ninho ou construir o seu próprio, a eleição da presa e sua captura, a postura dos ovos e a sua morte. Se juntarmos a tudo isso que os seus pais morreram no verão anterior, deduziremos que o comportamento instintivo prevalece sobre qualquer factor de aprendizagem.
O cão como espécie altricial está muito ligado nos seus comportamentos, aos instintos e à aprendizagem que falámos anteriormente. Por meio da aprendizagem associativa e do condicionamento operante a que o submetemos veremos desenvolvidos e ampliados os seus padrões de conduta individuais que, de não serem manipulados, se limitariam à resolução de problemas derivados da sobre-vivência e da reprodução. Ainda assim o conhecimento dos instintos mais importantes que desenvolve e a adequada valorização dos comportamentos associados a eles conformam o pilar base para compreender o animal.

Traços de personalidade ligados ao carácter

Um dos erros mais frequentemente cometidos ao falar do comportamento dos cães, do qual nem os cinólogos escapam, é o emprego de termos que correspondem a outros âmbitos e cujo significado não pode empregar-se na etografia canina. Assim, é comum utilizar-se a antiga classificação de Hipócrates definindo “ (cães de) carácter excitável, tranquilo, agressivo ou temeroso”, o uso do vocábulo “temperamento” para definir agressividade, ou confundir guarda com defesa, etc. Na cinofilia moderna, os estudos têm precisado muito bem a terminologia correcta e, independentemente do autor ou técnico, sem ambiguidades, é facilitada assim, a compreensão do comportamento canino.
Nas relações que o cão tem com o meio ambiente – ocupado por ele, e consequentemente, por outros animais e pelo homem, tanto fazendo parte do grupo sócio-expressivo ou estranho a este – evidenciam-se, de modo notório, dez comportamentos naturais, três deles ligados ao carácter: a docilidade, a sociabilidade, a curiosidade e sete eminentemente ligados ao temperamento: a vigilância, o temperamento, a valentia, a possessibilidade, a combatividade, a agressividade e a coragem.
Qualquer destes comportamentos exteriorizados podem ser mais ou menos acentuados segundo a raça a que pertence, potenciando-se entre si ou contra-pondo-se (e até anulando-se), constituindo assim, uma espécie de Bilhete de Identidade das suas aptidões naturais.
…Aptidões e faculdades a ter em conta em qualquer Plano de Adestramento, pois - como disse o Etólogo Enrique Lerena de la Serna – “a educação não pode modificar os fundamentos inatos do carácter” portanto, o adestramento para certas funções é desaconselhável em raças cuja memória genética é inexistente, mas ainda que existindo concordância condutal, carecem as devidas capacidades morfológicas (tamanho insuficiente; particularidades corporais que os impedem desempenhar as tarefas solicitadas sem riscos maiores; pouca adaptação climática; etc.), em suma, não recomendáveis profissionalmente.
Ainda que com um treino específico, quiçá, potencie algumas destas faculdades e, inversamente, exija um mínimo noutras das aqui mencionadas, os comportamentos básicos relativos ao carácter do cão adestrável são os que se seguem:

Docilidade. Tem a ver com a facilidade do espécimen canino em aceitar o homem como seu superior hierárquico. É colocado, num nível inferior na escala da matilha, mas não na condição de escravo temeroso e submisso. Por cão dócil entende-se aquele que aceita o humano como guia equivalente ao líder dos grupos caninos selvagens. A docilidade, pois, não será confundida com timidez nem medo do castigo; parte da confiança, da entrega natural e benéfica a um mesmo projecto, não anula a índole mas sim amplia-a.

Sociabilidade. O cão, animal gregário, só se expressa completamente quando integrado em comunidades; daí, um exemplar sociável ganha pessoalmente e ganha a sua espécie. Deste modo, insere-se com naturalidade dentro do âmbito propício, comunicar-se sem excitação ou impaciência extremas é inerente ao impulso genético de domesticidade que se distingue da do seu primo Lobo. A falta de sociabilidade manifesta-se com temor, ansiedade e inquietação. Sociabilidade e docilidade são dois comportamentos de base que se desenvolvem no cachorro no segundo mês de vida, e autores como Daniel Torora dividem a dita capacidade social em: para com a família, para com as crianças e respeito para com os estranhos da casa; Humel agrega a disposição para outros congéneres e a sociabilidade com distintas espécies (gatos, aves, cavalos, vacas, etc.).

Curiosidade. Há um axioma comprovado que diz: “não vê nem entende o mundo aquele que não seja curioso, quem não tenha sede de indagar, procura do conhecimento (condição prévia de toda a aprendizagem). Também para o cão curiosidade é o desejo, o prazer e a faculdade de interessar-se – naturalmente – por tudo o que o circunda, fundamentado na vontade em explorar territórios e descobrir ambientes, problemáticas e resoluções novas, imprevistos, acrescentando a conduta instintiva com o imprinting – no dizer dos etólogos – e que definem o comportamento adquirido, donde a curiosidade joga um papel muito importante. A presença desta qualidade – em minha opinião – é primordial para o êxito de todo o adestramento.