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24/10/08

Educar, Adestrar e Treinar

Por ser um tema polémico - é abordado em muitas discussões e em tertúlias caninas - estes três conceitos têm-se tornado objecto de discordâncias em relação ao papel de cada um na evolução da aprendizagem do cão.

Para que, de uma vez por todas, se esclareça a importância que cada um deles têm no contexto em que se inserem, iremos de seguida ressaltar a importância de cada um.

Recorrendo-me do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, etimologicamente Educação é a “acção de desenvolver no indivíduo, especialmente na criança ou no adolescente, as suas capacidades mentais e físicas e de lhe transmitir valores morais e normas de conduta que visam a sua integração social”. Adestramento é a “acção ou resultado de ensinar, exercitar e potencializar conceitos de formação específica”.

Para facilitar a compreensão dos três conceitos e a diferença existente entre ambos, vamos utilizar o exemplo do ser humano.

O produto final de um ser vivo é o resultado da interacção do seu potencial genético com o meio em que se desenvolve. Sendo assim, podemos chegar à conclusão que, no ser humano, como no cão ou em qualquer ser vivo, a influência genética é pouco relevante na formação da personalidade de um indivíduo. Resta-nos a envolvente social para formarmos e moldarmos o carácter de cada ser.

A criança desde que nasce, começa a ser educada segundo os padrões culturais dos seus pais, através da experiência adquirida por estes e dos valores que defendem, irão ser transmitidas aos filhos com o objectivo de torna-los nos adultos de amanhã moldados à sua imagem ou à imagem daquilo que acham ser o tipo ideal; moral e socialmente. Assim, nos primeiros anos irão ser-lhes administrados conceitos básicos que, apesar de tudo, serão muito úteis e totalmente necessários para a vivência em sociedade: o conceito de hierarquia, a coesão familiar, ensiná-los a alimentarem-se, a vestirem-se, a sua higiene pessoal, os valores da solidariedade, da amizade, da honra, etc., a maneira como aceitar e lidar com os estranhos à família e muitos outros conceitos de primeira necessidade que lhes possibilitarão enfrentar o dia a dia. Isto é educar.

A aprendizagem mais formal e com objectivos de formação mais específica é aquela que é administrada nos bancos das escolas primeiro e nos anfiteatros das Universidades depois, administrados por pessoas com formação especifica para o fazer. Ler, escrever, deduzir matematicamente, interrelacionar conceitos de história, geografia, física, química, etc., adquirir cultura geral, enfim, formar-se intelectualmente. Isto é aprender e desenvolver o intelecto.

Depois de toda esta aprendizagem e do investimento na formação, precisamos de a colocar em prática. Para isso precisamos de ganhar experiência na actividade para o qual nos formámos, precisamos de praticar com vista a melhorar as nossas performances e a tornar-mo-nos mais competentes na profissão que escolhemos. Neste caso estamos a treinar os nossos atributos com vista a exercitar, a aperfeiçoar e a melhorar os conceitos já adquiridos.

Pois, se para nós humanos, isto é tão claro, porque não o será também para os cães? Não estarão neles relacionados estes ciclos de vida à semelhança do que acontece com os nossos filhos? Não necessitam eles de se socializarem e de se hierarquizarem? Não estamos nós obrigados a ensiná-los a comer a horas e em sítios certos, a fazerem as suas necessidades nos locais apropriados, a brincar, a jogar, a interagir connosco e com os da sua espécie, em suma, a torná-los sociáveis? Isto é educar um cão.

Tudo isso está muito correcto, mas essa aprendizagem ficaria incompleta se não conseguíssemos interagir e interrelacionar com eles de uma forma completa. Para isso o cão precisa de aprender mais e neste caso é uma aprendizagem já não tão abrangente do ponto de vista social e de cuidados primários de sobrevivência, mas mais específica em termos de obediência básica e social. Para vivermos em paz e harmonia com o nosso amigo canino ele tem que saber andar ao lado do dono calma e ordenadamente, tem que se sentar e deitar ao mando do dono, tem que saber ficar quieto e calmo quando o dono vai ao café ou à padaria, tem que vir quando é chamado, etc. E aqui, vamos ter que adestrar o nosso cão nessa componente.

Como nos humanos, há alguns cães que possuem características de carácter e capacidades intrínsecas para irem mais além na sua aprendizagem e esses, se tiverem um dono que esteja disposto a com eles colaborar para melhorar as performances, podem ir mais além numa actividade ou desporto canino. Neste caso, vamos melhorar, aperfeiçoar e potencializar a aprendizagem que foi feita durante a fase do adestramento com vista a tornar o cão mais competente na área do desporto ou da actividade que escolheu e para ser cada vez melhor e mais consistente no trabalho que realiza. Neste caso, estamos a treinar o nosso cão.

Do que foi dito podemos deduzir que, e infelizmente é pratica corrente em muitas das nossas escolas de adestramento canino, adestrar um cão que não tenha as bases consolidadas da sua educação primária é a mesma coisa que colocar uma criança de sete anos a tirar uma licenciatura em Engenharia ou em Medicina.

Por fim, é importante adiantar que tudo o que foi exposto, não é o resultado de uma mera opinião do articulista mas baseado em estudos efectuados pelos mais conceituados especialistas em Comportamento Canino.

02/10/08

"Imprinting" e Socialização

“Imprinting”

Conceito lançado pela primeira vez pelo naturalista Austríaco Konrad Lorenz (1903 – 1989) Prémio Nobel da Medicina em 1973 e considerado o pai da Etologia Moderna. Ele demonstrou que, no trabalho que realizou com gansos, estes seguiriam o primeiro objecto em movimento que encontrassem no seu meio ambiente, mal saíssem dos ovos, ocorrendo assim uma ligação social entre o pequeno ser e o objecto ou organismo que eles vissem em primeiro lugar. Foi o caso da experiência realizada pelo próprio Konrad Lorenz que ao criar uma ninhada de gansos cinzentos desde a oclusão dos ovos, os pequenos gansos o tomaram como sua mãe, seguindo-o incondicionalmente e, mesmo depois de se tornarem adultos, manifestaram sempre maior preferência por ele do que pelos outros gansos.
O comportamento de um animal, de qualquer animal, é o resultado da interacção de dois factores fundamentais: a genética e o meio ambiente, e em muitos casos é quase impossível separar o aspecto filogenético[1] do ambiental. Um dos exemplos mais curiosos dessas influências no referido comportamento animal é o chamado “imprinting” (estampagem ou impregnação em português, apesar do termo, em si ser intraduzível).

O imprinting é a primeira e mais duradoura forma de aprendizagem. Graças a ela, o animal aprende a ser membro da sua espécie, enquanto estabelece relações com os de outra.

Em todas as espécies existe um período, denominado período crítico, durante o qual o factor ambiental é mais susceptível de influenciar o comportamento e é nesse espaço de tempo da vida do animal que a acção do imprinting resulta particularmente intensa e duradoura, tendo grande importância no desenvolvimento dos padrões ontogenéticos[2] ou vitais.
O período crítico não é o mesmo em todas as espécies. Nas aves, por exemplo, por pertencerem a espécies precociais[3], o referido período emerge logo nas primeiras horas depois do nascimento, nos canídeos esse espaço de tempo inicia-se à terceira semana de vida, quando os cachorros começam a abrir os olhos, e a ouvir.
É importante que, nesta fase, a mãe esteja presente na altura do desenvolvimento sensorial dos cachorros, pois será ela o primeiro elemento que eles verão e será nela que se fixarão como pertencentes a uma determinada espécie.
Para a mãe também é extremamente importante esta fase, pois o desenvolvimento do comportamento maternal da fêmea está caracterizado pela aparição de um período sensível em que ela aprende a reconhecer as suas próprias crias assegurando, desta forma, que o instinto maternal se mantenha durante a época de amamentação.

Socialização


Nos canídeos o período de socialização está compreendido entre as 5 e as 12 semanas. Podemos definir esse período como o espaço de tempo compreendido entre o início da maturidade sensorial e a consolidação das estruturas nervosas que controlam a resposta de medo perante situações novas. É ainda durante este espaço de tempo que se dá o desenvolvimento sensorial e locomotor do animal e, graças a ele, o cachorro aprende a deslocar-se, explorar o seu meio envolvente e a interagir com os demais. Às 12 semanas acaba este período com a primeira demonstração de medo como resposta a alguns estímulos novos.
Em determinadas espécies, como os canídeos parece que se produz uma aceitação implícita do humano como companheiro social em pé de igualdade com os membros da sua própria espécie. Uma exposição breve durante o período sensível ou de socialização, é suficiente para que se estabeleça uma relação normal com os seres humanos. É nesta fase que o cachorro deve iniciar o contacto com outros cães e fundamentalmente, com adultos e crianças. É a altura de colocar o cachorro perante situações novas parecidas com as que encontrará na fase adulta.
Se até à 14ª semana não se proceder a esta integração do cachorro na sociedade onde irá viver, este deixará de responder e o seu futuro comportamento tenderá para a anormalidade.

Esta fase de socialização é particularmente importante para a vida futura do cachorro e daqueles que com ele irão conviver. É aqui que se irão lançar as bases que definirão a estrutura mental e social de um cão. 90% dos problemas comportamentais anómalos e desviantes de cães que têm chegado ao nosso conhecimento, têm origem numa deficiente, mal conduzida e mal executada fase de socialização.


Glossário

[1] Filogenético – Incluído no seu material genético. Herdado

[2] Ontogenéticos – Desenvolvidos durante o período de vida do animal

[3] Espécies precociais – Espécies de rápido desenvolvimento. Necessitam de poucos cuidados parentais. Contrário de Espécies altriciais.