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08/02/12

DOMINÂNCIA CANINA! O fim de um mito?

1ª Parte

Será um objectivo prioritário dos nossos cães tornarem-se líderes da sua “matilha” para dominarem os seus donos? Lá porque descendem dos Lobos, teremos que adoptar as mesmas estratégias que estes utilizam para os liderarmos? Será que o termo “Alfa” ainda faz sentido? Serão a estas e a outras perguntas que iremos tentar responder numa série de artigos, que iniciaremos este mês, acerca do mito: Dominância inter-específica.

Este é, de certeza, um tema polémico, principalmente para aqueles adestradores e comportamentalistas que não evoluíram e que ainda utilizam métodos de treino e de modificação comportamental baseados em premissas arcaicas segundo o princípio da necessidade de dominar para poder subjugar e, por vezes, torturar os animais com o objectivo de obterem destes os resultados pretendidos: uma submissão baseada no medo e no terror.

Felizmente, nos últimos 10, 15 anos, começaram a aparecer alguns conceituados investigadores (dos quais iremos citar alguns deles durante os artigos que iremos apresentar) interessados em aprofundar estas questões relacionadas com o tipo de simbiose existente entre os humanos e os cães, e as conclusões a que todos eles chegaram foram, no mínimo, surpreendentes, indo em contraponto ao consenso que até aí existia de que devíamos ter uma organização social com os nossos cães baseada no estatuto hierárquico, exactamente como os Lobos têm entre si sendo que, para conseguirmos conviver com eles, teríamos que adoptar também o conceito de “alfa” como existe nas grandes alcateias de Lobos. Esses investigadores vieram dizer-nos que, efectivamente, não é nada disso que acontece com os cães mas tão só que, para haver um equilíbrio na relação humano/cão são só necessárias três coisas: correcta socialização na fase crítica do crescimento do cachorro, conhecimento da linguagem canina para que possamos interpretar os sinais emanados por estes e um consequente adestramento em obediência social, seguindo os princípios do condicionamento operante e sem recurso ao castigo físico.

Vamos então tentar explicar o mais pormenorizadamente possível e com a clareza que se impõe para que o leitor possa compreender os conceitos, por vezes algo técnicos, e assim poder acompanhar-nos na mensagem que queremos transmitir.


E o Lobo torna-se Cão

O zoologista austríaco e fundador da Etologia moderna, Konrad Lorenz (Prémio Nobel da Medicina em 1973) teorizou, na sua obra “E o Homem encontrou o Cão”, que algumas raças de cães domésticos descendiam dos Lobos, outras dos Chacais e outras ainda dos Coiotes. Com a evolução da genética e a introdução do ADN mitocondrial como suporte para a identificação taxonómica das espécies, chegou-se à conclusão que esta teoria de Lorenz estava errada e que tanto o Chacal (Canis Aureus), como Coiote (Canis Latrans) como o cão (Canis Familiaris) são ramificações de uma mesma árvore cujo tronco é o Lobo (Canis Lupus). Queremos com isto afirmar que tanto o Cão, como o Chacal como o Coiote, numa dada altura do seu percurso afastaram-se do seu ancestral, o Lobo e evoluíram noutras espécies totalmente distintas.

No caso que nos interessa, o Cão, as principais razões pelas quais os investigares consideram que este descende do Lobo são as seguintes:

• O ADN mitocondrial de ambos virtualmente é o mesmo (99,8%);
• Têm o mesmo número de cromossomas (78);
• Têm o mesmo número de dentes (42) se bem que os dentes dos cães são mais pequenos que dos lobos.

Estes talvez sejam os únicos traços que são partilhados por cães e lobos uma vez que, ao longo da evolução dos cães como espécie autónoma, foram produzidas mudanças físicas que devemos considerar:

• Mudou a forma e o tamanho do crânio que, dependendo da raça, se encurtou ou se alargou, sendo o Bulldog Inglês um exemplo típico, se bem que nos lebreus (galgos) o crânio se tenha alongado e estreitado. À semelhança do que acontece com o tamanho do indivíduo, os tamanhos do crânio e do cérebro são proporcionalmente mais pequenos que os de um Lobo. Esta redução do cérebro tem como consequência que os sentidos da visão e da audição são menos desenvolvidos nos cães que nos lobos;
• Os cães possuem glândulas sudoríferas nas almofadas das patas, mas os lobos não;
• Os lobos não alteraram o seu porte e colocação da cauda, mas os cães apresentam uma panóplia de posições, tipos e tamanhos.
• As cadelas têm dois cios por ano e iniciam a sua maturidade sexual entre os 6 e os 12 meses podendo entrar em estro em qualquer altura do ano. As lobas têm só um cio e sempre na mesma época do ano, de maneira que os seus lobachos nasçam na primavera quando as temperaturas são mais agradáveis e a comida mais abundante. Além disso as lobas não têm o seu primeiro cio antes dos dois anos de idade.

Ao longo de milhares de anos a grande variedade de raças de cães que foram criadas até aos nossos dias evoluíram do lobo. Durante este tempo, é possível que o lobo tenha modificado muito pouco a sua estrutura física e mental, em contrapartida nós temos produzido, mediante uma combinação de factores naturais e de selecção, raças de todas as formas e tamanhos. O peso de um cão doméstico pode variar dos 680 gr. de um Chihuahua aos 95 Kg. de um São bernardo. O lobo manteve o seu peso, tamanho e coloração do pêlo e não houve alterações pelo menos nos últimos 1000 anos.

Há cães com diferentes posições de cauda e forma das orelhas. Criámos cães com o objectivo de nos ajudarem nas tarefas do dia-a-dia, tais como no pastoreio, na caça, na guarda, puxar trenós, ou como simples animais de companhia. A pelagem de um cão pode variar de cor, tamanho e tipo e, até há raças sem pelo algum. Inclusivamente modificámos o movimento dos cães. No galope dos galgos, a dado momento, têm as quatro patas no ar, algo que se assemelha à corrida dos gatos. Os lobos não correm desse modo. Os lobos adultos não ladram, uivam, os cães, devido à neotenia, ladram toda a sua vida.

O cérebro do cão mudou. Deixou de pensar como o de um lobo que não é. O cão tem prioridades distintas das do lobo: valoriza aquilo que o reforça dentro do seu meio ambiente, como a comida, os brinquedos, os passeios, a companhia e a brincadeira com o seu dono, praticar vários tipos de desportos, etc. O cão deixou de precisar de caçar para se alimentar, de procurar companheira/o para se reproduzir, de guardar para se proteger uma vez que o seu dono humano proporciona-lhe tudo isso.

O desenvolvimento social e comportamental do cão também se alterou na mesma proporção em que se modificou a sua componente física uma vez que, a frequência com que os lobos apresentam padrões motores de sobrevivência diferem substancialmente da dos cães. Por exemplo, têm que aprender mais rapidamente que os cães a resposta de medo: aos 19 dias para um lobo contra os 49 dias para os cães. Os lobos têm que aprender muito rapidamente as habilidades de caça para poderem sobreviver. Um cão doméstico não necessita de aprender as técnicas de caçar e matar. Os valores de sobrevivência do lobo são: Comida, água, um lugar onde possa estar seguro e protegido, companhia dos congéneres e reprodução.

O casal Ray e Lorna Coppinger definiram a sequência dos padrões motores de sobrevivência dos lobos da seguinte forma:

Posicionar-se > fixar o olhar e agachar-se > perseguir > agarrar-morder > matar > dissecar > consumir

Em relação aos nossos cães, faltam-lhes partes desta sequência predatória dos lobos. “Parte da domesticação e da evolução dos cães foi realizada remarcando certas partes da sequência e suprimindo ou deixando em estado latente outras” (James O’Heare)

Por exemplo, o padrão motor do comportamento predatório de um border collie de pastoreio é:

Posicionar-se > fixar o olhar e agachar-se > perseguir > agarrar-morder > matar > dissecar > consumir (Ray e Lorna Coppinger)

Neste caso os padrões de fixar o olhar e agachar-se são os mais reforçantes da sequência. Nota-se a falta de agarrar-morder e matar, apesar disso estes padrões motores estão presentes mas encontram-se num estado latente.

No caso de um Retriever que necessita de trazer as peças de caça com boca branda para não as destruir, a sequência do seu padrão motor é a seguinte:

Posicionar-se > agachar-se > agarrar-morder > consumir
(Ray e Lorna Coppinger)

Assim, por um lado temos um lobo cujos padrões motores de predação não mudaram porque precisa deles intactos para a sua sobrevivência. Por outro temos os nossos cães domésticos de diferentes raças, com padrões motores de predação totalmente distintos e que se adaptaram em cada raça para se ajustarem às distintas funções, ou como animal de companhia ou como cão de trabalho.

Sobre as diferenças de comportamento entre um lobo e um cão doméstico, Steven Lindsay disse: “Ao longo da história da domesticação se segregou os cães dos lobos pelo seu comportamento e um deles deve ter tido o cuidado de não realizar excessivas generalizações entre os dois canídeos no que se refere às suas respectivas motivações e padrões de comportamento”.

Depois de analisado em pormenor a evolução do cão e a sua separação do lobo, temos que este (Canis Lupus) permaneceu sem alterações durante centenas de anos e temos o cão doméstico (Canis Familiaris) que mudou na sua aparência e no seu comportamento e que agora pode fazer muitas coisas que são completamente estranhas ao lobo. Os cães estão neste momento tão afastados dos seus ancestrais como nós estamos afastados dos nossos cães.

No próximo mês iremos continuar com este tema da dominância canina.