O que é que existe na sociedade humana que a torna tão passível de ser explorada? E como é que os cães conseguem fazê-lo? Nós somos, tal como dizia John S. Kennedy, etólogo especialista do comportamento animal, antropomorfizadores “compulsivos”, sempre à procura de comportamentos que mimem, mesmo ao de leve, fenómenos sociais humanos como a lealdade, a traição, a reciprocidade.
A nossa capacidade cognitiva que faz com que atribuamos responsabilidades aos outros é, em parte o que nos torna humanos. Mas isso é realmente compulsivo. Os seres humanos fazem-no de uma forma tão instintiva que estão sempre a atribuir motivos bons ou maus a forças inanimadas como, por exemplo, o tempo.
A nossa esperteza desaparece quando estamos na presença de um mestre como o cão. A nossa tendência é agarrarmo-nos a comportamentos caninos, que afinal são programados, e vermos nesses comportamentos histórias de amor e fidelidade. Muitas vezes, os cães só precisam de ser eles próprios para nos iludirem.
Tomemos como exemplo o “instinto de protecção” em que os donos de cães têm tanto orgulho. Estudos recentemente divulgados concluíram que este foi dos instintos que mais se foi diluindo com a domesticação do cão desde o seu inicio, há 16 000 anos. Os investigadores demonstraram que esta manifestação pretensamente instintiva não tem nada a ver com a lealdade do cão e a suposta preocupação que ele tem por nós. É sim um exemplo daquilo que os psicólogos chamam de “agressão facilitada”. Em vez de sermos protegidos, o cão sente-se protegido por nós e está alerta para qualquer sinal de perigo vindo do exterior.
Pensemos também nas inúmeras histórias que já ouvimos sobre cães que salvaram pessoas. Os cães não têm nenhum instinto especial que os faça salvar pessoas e não entendem que é isso que estão a fazer mesmo quando o fazem. Os cães de busca e salvamento são treinados através da exploração do instinto que têm (esse sim) de cobro ao trazer objectos que lhes são atirados. Os cães são treinados a apanhar e a ir buscar apenas um objecto. Uma vez que conseguem dominar esta tarefa, estão prontos para o passo seguinte: o treinador pega num objecto que o cão goste muito e esconde-se e o cão é encorajado a encontrar o seu brinquedo (motivador). Quando o cão descobre o seu treinador, recebe o brinquedo como recompensa. A repetição frequente deste exercício facilita a consolidação do mesmo.
Isto não retira aos cães o seu fabuloso sentido de olfacto e a capacidade que têm para serem treinados, nem o útil que são em situações desse género. O Que isto significa é que as coisas são mais simples do que nós queremos acreditar. Tal como Gregory Acland salienta, “o que estamos a fazer é isolar um comportamento e a subvertê-lo.” Newfoundlands e outros cães que retiram objectos da água não podem nadar ao lado dos seus donos porque estão sempre a tentar “salvá-los”.
O ponto a que comportamentos complexos semelhantes são geneticamente programados é por vezes assustador. Cadelas grávidas ou em pseudo-gestação tentam frequentemente adoptar um animal de peluche e “tomar conta” dele. Um pássaro cardeal no seu ambiente natural foi observado durante semanas a alimentar peixinhos. Os peixes vinham à tona da água e abriam a boca – como fazem os filhos dos pássaros -, e isto despoleta o comportamento “paternal” da ave.
Uma parte do trabalho de Elaine Ostrander no Projecto sobre o Genoma Canino apresenta uma tentativa em identificar os genes responsáveis por instintos caninos tão complexos como o dos border collies e a sua tendência gregária ou o gosto pela água dos newfoundlands. A terceira geração de cachorros cruzados entre border collies e newfoundlands revelou uma boa mistura dos dois comportamentos – o suficiente para acreditarmos que foram controlados geneticamente. Esta experiência, que envolveu cerca de uma dúzia de genes, prova que precisaríamos de uma centenas de cães para concebermos uma estrutura desses genes.
Melissa Fleming, uma seguidora dos passos de Ostrander, desenvolveu uma análise que permite quantificar certas diferenças de comportamento inatas. Fleming descobriu, que os border collies olhavam fixamente para um carro que funciona por controlo remoto, enquanto o newfoundland não lhe prestava qualquer atenção e só reagia quando o carro vinha na sua direcção.
Outros estudos demonstraram até que ponto é que o comportamento canino é geneticamente definido. Certos tipos de huskies siberianos e de pointers têm uma enorme timidez ou aversão em relação ao ser humano. Quando em contacto com outros cães e mantidos no mesmo canil, os cães tímidos retraem-se (os pointers chegam mesmo a ficar totalmente imóveis quando as pessoas se aproximam), enquanto os outros cães pedem festas. Os criadores conseguiram produzir cães de raça que ladram e outros que não ladram quando sentem o cheiro de uma pista e dálmatas que assumem ou não posições de estátua e acompanham de perto o galope dos cavalos, e até poodles miniatura que nos dão um “passou bem” ou não.
Muito provavelmente o gene da submissão não existe, mas é isso que faz com que o cão saia muitas vezes ileso de situações, inclusivamente de homicídio, na sociedade humana e é inato no comportamento social do lobo. Os cães são animais sociais, tal como nós. A organização social canina consiste numa hierarquia muito rígida em que a submissão a cães superiores e o seu apaziguamento são elementos fundamentais para a sobrevivência. As hierarquias de domínio evitam a violência, mas ela está sempre presente. “É isso que os cães fazem na vida”, diz Gregory Acland, “calculam o comportamento que é esperado deles numa determinada situação e actuam”.
Até os maus treinadores conseguem que os cães façam o que eles querem. Se berrarmos a um cão, ele adula-nos. Será que isto significa que ele se está a desculpar por se ter “descuidado” no tapete persa? A verdade é que isso não interessa ao cão. A adulação é uma técnica de desvio da agressão que o cão domina. Comportamentos como estes são próprios da evolução dos lobos porque são socialmente eficazes. Os cães limitaram-se a afinar estes comportamentos para os poderem aplicar na convivência com o ser humano. Tal como nós somos geneticamente programados para procurarmos sinais de amor e lealdade, os cães são geneticamente programados para explorarem essa nossa fraqueza.