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10/05/10

A Responsabilidade da Criação na Agressividade e Taras Hereditárias Caninas

2ª Parte


Hoje em dia, quando a aceitação da “biodiversidade” não científica é quase tão comum como a aceitação da “pureza da raça” o era há um século, a criação consanguínea é muitas vezes retratada como um mal absoluto. A criação consanguínea foi realmente uma técnica fundamental no desenvolvimento de praticamente todas as plantas e de todos os animais usados na agricultura e é a única forma de desenvolver rapidamente um caminho que produzirá consistentemente determinadas linhas desejadas. Isto é, no fundo, uma consequência do facto biológico de que os cromossomas vêm em pares e que cada um é herdado de cada um dos pais. Os indivíduos directamente relacionados – irmãos e irmãs, pais e filhos – certamente têm os mesmos genes. O cruzamento entre dois indivíduos directamente relacionados aumenta a possibilidade de o filho ter o mesmo gene para uma determinada característica em ambos os cromossomas – um estado denominado “homozigose”. Um organismo que é heterozigótico numa determinada característica, ou seja, que tem versões diferentes do mesmo gene em cada cromossoma, pode parecer-se a um outro que seja homozigótico, mas não passará essa característica ao seu descendente de uma forma tão consistente. Senão, vejamos o exemplo clássico. Tanto um indivíduo homozigótico como um indivíduo heterozigótico podem ter olhos castanhos, embora o segundo tenha um gene para olhos castanhos e outro para olhos azuis. O Castanho é “dominante” neste caso, embora os genes “recessivos” (azuis) de dois indivíduos heterozigóticos podem combinar na reprodução e produzir um descendente que seja homozigótico na característica recessiva e que por isso mesmo tenha um aspecto diferente: uma pessoa com dois genes azuis tem olhos azuis. Com um cruzamento entre homozigóticos, nada há a dizer. Seja qual for o par de cromossomas que passa para o filho, não haverá qualquer diferença nos resultados. Por outras palavras, os homozigóticos criam “a verdade do tipo” para determinadas características para as quais foram seleccionados.

Uma vez que os indivíduos aparentados têm muitos outros genes em comum, o cruzamento consanguíneo também aumenta a possibilidade de alguns genes de características indesejáveis noutros campos do genoma criarem problemas. Falhas em cruzamentos da mesma raça em animais domésticos tendem a ser recessivas, porque as doenças genéticas provocadas por marcadores dominantes são rapidamente eliminadas num programa de reprodução. Se eliminarmos da população reprodutora todos os animais que manifestaram sinais de uma determinada doença, displasia da anca por exemplo, estaremos também a eliminar os genes da doença de toda a população reprodutora. (Basta um só gene dominante para provocar uma doença dominante, então não existem portadores “silenciosos” destes genes). Mas as doenças genéticas que aparecem num só animal homozigótico numa característica recessiva podem ser transmitidas em silêncio durante várias gerações. Só quando há a combinação entre dois portadores desse gene recessivo é que a doença se manifesta.

Os dados genéticos confirmam que o último século de criação de cães produziu animais extremamente puros. Investigações utilizando marcadores de genes mostram que dois membros e uma família humana normal terão uma combinação de genes diferente de 71%. Em cães arraçados, essa quantidade de genes é de 57%, na maioria dos cães puros é de 22% e em certas raças raras é de 4%. Até os rafeiros são mais puros do que as populações humanas mais “puras” (os Amish, por exemplo, ou famílias na Índia em que existem casamentos entre tio e sobrinha).

Este grau de uniformidade significa que quando um marcador mau entra por acaso ele vai ficar restrito ao grupo. Uma série de doenças genéticas tem surgido em várias raças caninas. Algumas são verdadeiramente estranhas: a epilepsia dos poodles, rigidez muscular súbita nos terriers escoceses, febre crónica nos shar-peis, tumores em retrievers, problemas cardíacos em boxers e Dobermanns, etc.

O mundo do espectáculo canino e a preocupação obsessiva pela aparência das raças são frequentemente apontados como grandes responsáveis pela origem destas doenças genéticas. Mas nessa crítica não está o essencial: seleccionar uma coisa apenas (como a aparência) não invalida a escolha simultânea de outras coisas, como o comportamento gregário (social) e a saúde. Os criadores podem seleccionar as características que mais lhes agradam e não conseguirem travar o surgimento de doenças indesejáveis. Isto se começarem por uma população de início e fizerem os possíveis por manter o gene fundador nas gerações seguintes. Os cães de caça são testados frequentemente pra confirmação da condição física para competições. São seleccionados cuidadosamente pelo faro apurado que têm, pelo trabalho em “equipa” e pela habilidade em “falar” quando apanham o faro. Os border collies são seleccionados pela capacidade gregária. Quase todos por acaso também têm pescoços brancos e a cauda com a ponta branca.

A verdadeira origem do problema genético em muitas raças não está tanto na criação de raças com critérios de aparência, até porque a raça tem poucos ascendentes. Muitas raças também sofrem o “efeito de popularidade”, e aqui justificam-se as críticas feitas aos criadores. Um campeão dos ringues de exposição poderá dar origem a centenas de ninhadas , espalhando os seus genes virtuosos – e defeituosos – e afastando outras linhagens ancestrais. O problema é mais grave em raças que sofreram uma selecção genética. Raças que exibiam padeceres recessivos estranhos como os pastores irlandeses , os retrievers de pelo curto, os cães de água portugueses ou os shar-pei, quase desapareceram durante o último século e foram repescados de outras raças.

Ataques de agressividade em raças como os springer spaniel podem muito bem ser o resultado da existência de características recessivas numa população inadvertidamente fechada onde existem poucos genes originais. Mas os Juízes dos eventos de morfologia canina também têm culpas no cartório. Senão vejamos: os cães que têm a cabeça e a cauda direitas e erguidas atraem a atenção dos juízes e ganham os concursos. Mas estas são também marcadores de um cão dominador e agressivo. Alguns criadores de cães de exposição não vivem com os seus animais (são deixados nos canis) e estão perfeitamente dispostos a esquecer as características recessivas em detrimento de um pelo perfeito, por exemplo.

Reparar os danos

A conclusão surpreendente dos estudos genéticos modernos leva a crer que a pior maneira de corrigir estes erros é eliminar os portadores das doenças genéticas da população reprodutora. A falácia do ponto de vista racista foi centralizada na ideia de que a purificação da raça é geneticamente forte. De facto, o que se passa é o oposto – a diversidade genética é fortalecida porque ajuda a assegurar a reprodução entre homozigóticos em características desejáveis noutras partes do genoma. Até os portadores de doenças contribuem para a manutenção da heterozigose . Por exemplo, um cão que possui o gene da epilepsia pode também ser o portador do gene que o protege contra o cancro, tal como defende Deborah Lynch, da Fundação para a Protecção Canina (que investe cerca de um milhão de dólares anualmente em investigação de doenças caninas).

A chave está em não cruzar dois portadores de genes defeituosos. A solução está em manter os laços parentais o mais diversos possível enquanto se corrige o problema, e esta correcção vai sendo aos poucos e poucos mais fácil à medida que se vão descobrindo mais medidas de detecção de doenças genéticas nos cães.

Actualmente os criadores de cães já procuram obter formação nesta área (já existem Cursos, em Portugal inclusive, que formam criadores caninos) e já começam a entender cada vez melhor as questões genéticas e, como consequência dessa formação, hoje em dia têm mais capacidade de enfrentar problemas do que há alguns anos. No entanto, ainda existem criadores que em vez de utilizarem os conhecimentos existentes para detectar as doenças utilizam-nos para medir a pureza genética. Mas a criação de raças puras é como contratar um contador de histórias tendo somente em conta a quantidade de gerações que o precederam. O facto é que alguns marcadores genéticos podem estar associados a uma determinada raça por mero acaso. É possível, devido ao cruzamento consanguíneo entre cães, encontrar DNA (alterado) que é característico de uma determinada raça. Mas a estratégia mais sensata é basear a criação de cães na diversidade genética. De um ponto de vista científico, é perfeitamente possível fazer isto e simultaneamente satisfazer os desejos dos criadores em manterem pura uma determinada raça.

Porém, certos criadores de cães não têm o mesmo incentivo e as recompensas ainda vão para aqueles fecundados por campeões. Mas, a longo prazo, a disponibilidade cada vez maior de testes genéticos comprovará que os criadores sacrificaram bons genes na busca de cachorros que tenham no seu pedigree um ou mais campeões. Muitos clubes de raça incentivam o uso de testes disponíveis no mercado.

A verdade é que a diversidade genética canina é tão vasta como a dos seus antepassados selvagens.

Mas podemos ficar descansados porque teremos sempre os cães rafeiros ao nosso lado, apesar das tentativas sucessivas de os pormos de parte. Os rafeiros normalmente são saudáveis devida à sua energia híbrida e, em geral, são bons cães. De facto, os rafeiros simbolizam a herança da evolução do “Verdadeiro Cão”, esse animal que viveu connosco, que se adaptou e explorou a nossa sociedade e que o fez por si só. Os rafeiros são os verdadeiros cães e caso o pior aconteça talvez eles consigam abrir-nos novos caminhos, tal como os seus antepassados tão habilmente o fizeram pelo menos durante 15 900 dos últimos dezasseis mil anos.