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09/03/10

A Responsabilidade da Criação na Agressividade e Taras Hereditárias Caninas

1ª Parte

Porque é que há tantos cães desadaptados nos nossos dias? Se os cães se domesticaram a eles próprios, se conseguiram o seu lugarzinho confortável na sociedade humana, caindo nas boas graças dos homens, se aprenderam comportamentos que suscitam uma resposta favorável, então porque é que os jornais estão constantemente a noticiar casos de agressão entre cães e pessoas?

Um jovem casal tinha um setter irlandês com 18 meses. O marido era frequentemente ameaçado pelo cão, que já lhe tinha mordido várias vezes. O cão rosnava cada vez que o marido entrava na sala. Isto acontecia quando a mulher e o cão estavam na sala antes do marido entrar. O cão gostava de ser passeado pelo marido, mas só a mulher podia estar presente na cozinha na hora da comida. Era frequente o cão atacar o marido quando ele tentava entrar no seu quarto depois de a mulher lá estar.

É impossível dizer ao certo se problemas como este pioram de dia para dia, mas não há dúvida que o fenómeno da agressividade nos cães é recorrente. Em Baltimore, uma cidade com aproximadamente 100 mil cães, houve cerca de sete mil ataques a pessoas num só ano. De acordo com o Centro de Controlo e Prevenção da Doença, todos os anos nos Estados Unidos, 800 mil pessoas requerem assistência médica por terem sido atacadas por cães, seis mil são hospitalizadas por ataques mais graves e cerca de quinze pessoas, a maior parte crianças, são mortas.

A agressão faz parte da psicologia do cão. É assim que os cães mais jovens desafiam cães superiores na hierarquia canina. Outros comportamentos específicos reflectem tendências inatas que se revelaram incompatíveis com o dia-a-dia urbano da civilização moderna. Por exemplo, as raças de cães de montanha sofrem daquilo que os Etólogos como Katherine Houpt, da Universidade de Cornell, chamam “barreira da frustração”. Estes cães adoram correr, odeiam estar confinados a um espaço fechado e reagem a esta situação roendo tudo ou adoptando outro comportamento destrutivo.

Mas muitas vezes é o comportamento dos donos que influencia o cão. Os cães são tão bons a captar os sinais humanos que captam rapidamente as nossas falhas psicológicas. Um inquérito feito a donos de Cocker spaniel na Grã-Bretanha provou que os donos que menos se afirmavam tinham cães mais agressivos. O problema da ansiedade por separação aumentou com a quantidade de casais jovens que trabalham fora de casa e deixam o cão sozinho em casa a estragar tudo e depois regressam a casa e os enchem de mimos porque se sentem culpados por os terem abandonado. Existe também uma tendência, apontada tanto por criadores como por veterinários, para as pessoas verem as suas expectativas frustradas porque não fazem a menor ideia no que estão a meter-se quando trazem um cão de caça, por exemplo, para suas casas.

No entanto existem várias razões que nos levam a acreditar que a agressividade canina e outros problemas comportamentais não são “normais” no relacionamento entre o dono e o cão. Nem são sequer apenas o resultado da personalidade do dono. Em 16 000 anos, é provável que tenha havido uma selecção bastante apurada (mesmo que involuntária) dos cães agressivos. E a maior parte das pessoas que procuram ajuda por causa deste problema já fizeram como Houpt diz, “tudo o que podiam fazer”. Os cães selvagens não são muito agressivos; estudos feitos sobre cães urbanos indicam que apenas um terço de rafeiros exibe um comportamento agressivo quando alguém se aproxima.

Muitos explicam a agressividade canina pelo culto que certos grupos sociais fazem dos seus animais de estimação. Mas nem isto explica o que se está a passar. Raças como os Dobermann ou os Pastores Alemães, temidas pela agressividade, nem sequer aparecem nas listas dos cães mais problemáticos. De acordo com a investigação efectuada por Houpt, são cães como os Springer ou os Cocker Spaniel ou os Labrador que predominam nessa lista negra. O fenómeno da “fúria dos Springer” é conhecida pelos donos desta raça e dos Cocker Spaniel e de acordo com o inquérito de Houpt, 27% dos Springer morderam uma pessoa, o que é o dobro da média para os cães.

Estes ataques súbitos são estranhos, e tudo indica que a explicação está na forma como os cães foram educados durante o último século. Agora, quase todos já ouviram falar dos malefícios do cruzamento de cães da mesma família e outras doenças hereditárias estão constantemente a ser citadas por activistas dos direitos dos animais nas campanhas contra donos de animais de estimação, mas em especial contra criadores de cães. Estas imperfeições são frequentemente apresentadas como a consequência inevitável de qualquer tentativa por parte dos homens em manipular ou direccionar a evolução de uma espécie para características que lhe agradam.

Mas os marcadores genéticos sugerem que, há cerca de um século atrás, várias raças de cães foram desenvolvidas – qualquer raça, desde cães de colo até cães de guarda, desde cães de caça até cães de neve – sem que houvesse uma perda na diversidade genética geral e sem que houvesse uma alteração muito grande no que respeita à existência de anomalias físicas ou de comportamento. Também está provado que os problemas que surgiram não são tanto uma consequência directa de uma prática deliberada de criação, mas sim um efeito secundário que se poderia evitar.

Habitualmente os cães eram divididos em tipos gerais. Existiam cães pastores, cães de caça, spaniels, pointers, retrievers. Mas os pointers eram apenas pointers, e não pointers alemães de pêlo curto nem Vizslas nem Weimaraners. Tal como demonstraram os dados genéticos de Wayne, a reprodução na mesma raça e um fluxo de genes a uma escala universal estava a acontecer mesmo com a existência desta separação em tipos. Os tipos eram distintos, tanto no que diz respeito à aparência física como ao comportamento, e tinham sido pensados e escolhidos com objectivos específicos humanos. Mas o ponto crucial da questão está em que estes cães foram definidos pela forma e função e não pelo seu parentesco.

A partir de 1870, com a abertura de canis na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, livros de criação foram introduzidos no mercado em defesa da raça pura. Um cão só poderia ser registado como pertencendo a uma dada raça se os pais tivessem sido registados igualmente como sendo dessa mesma raça. Havia mais do que um pensamento racista por trás de tudo isto. Escritos sobre criação de animais de finais do século XIX, inícios do século XX, apontavam para uma eliminação de “fraquezas” e da necessidade de se manter a “linhagem pura” da raça. Olhando para a bibliografia de livros sobre cães o nome de Leon Fradley Whitney irá com certeza aparecer. Whitney foi o autor de muitos clássicos como O Livro Completo dos Cuidados do cão (ainda em circulação), O Cocker Spaniel, Como Treinar Cães de Caça e Como Criar Cães. O que certamente não se irá encontrar numa bibliografia sobre cães é uma outra faceta das obras de Whitney que inclui o livro Em defesa da Esterilização publicado em 1934, que recebeu uma carta elogiosa vinda de uma autoridade na matéria: Adolf Hitler (Whitney, pelo seu lado, elogiou Hitler publicamente, considerando-o um “grande estadista” quando ordenou a esterilização dos doentes mentais e dos loucos. Numa autobiografia que não chegou a ser publicada, escrita quarenta anos depois, Whitney ainda defendia a sua teoria de que “nenhum outro governante tinha tido a coragem nem o conhecimento de pôr o processo da esterilização a funcionar”. No entanto, concordou que na década de 30 não se tinha apercebido de que Hitler “era um ser humano desprezível.”)

Continua…

1 comentário:

Doggy Palooza disse...

Fico ansiosa pela continuação. Artigo muito interessante. Obrigada.