O ponto de partida para uma revisão científica sobre assuntos caninos é um esforço extremamente modesto mais conhecido por Projecto sobre o Genoma Canino, que não se compara ao Projecto sobre o Genoma Humano, um programa financiado com 3 biliões de dólares que tem por objectivo o levantamento de todos os genes do corpo humano. O projecto canino vai custar alguns milhões de dólares e muitos dos fundos serão provenientes de clubes de criadores Norte Americanos que pretendem desenvolver testes genéticos para doenças congénitas mais susceptíveis na raça que criam.
Descobrir os genes que provocam esta ou aquela doença é no que a maior parte das pessoas pensa quando se fala em levantamento de genes e investigação genética. Indicar as causas das doenças congénitas é, certamente, uma das maiores recompensas que surgirá dum melhor entendimento da estrutura genética do cão. Mas os genes de um indivíduo são mais do que um mapa da saúde pessoal. Eles são também a chave do percurso da evolução da espécie. O percurso do cão nos últimos 16 000 anos na companhia do homem deixou marcas distintas nos genes da população canina. Tal como um Arqueólogo pode deduzir hierarquias sociais, crenças e superstições numa civilização à muito desaparecida a partir de materiais por ela deixados, também o geneticista poderá deduzir muito acerca da história, evolução e ambiente social de uma espécie a partir dos padrões que todo este conjunto gravou nos seus genes.
Só o facto de termos chegado ao ponto em que os cientistas se decidem a fazer um estudo profundo sobre o genoma do cão, já significa uma mudança e um passo em frente no mundo da ciência. Durante vários anos, a comunidade científica manteve uma certa distância em relação aos animais domésticos em geral, mas particularmente no que diz respeito ao cão. Os zoólogos sempre consideraram os animais domésticos desinteressantes e sempre os classificaram como “degenerados” ou impróprios para pesquisa porque tinham perdido a capacidade de adaptação. Se pusermos a Medicina Veterinária de lado, é como se a genética molecular e outros grandes avanços científicos do século vinte e vinte e um tivessem pura e simplesmente esquecido o cão.
E depois convém não esquecer que os cientistas são tão sentimentais e pouco objectivos no que diz respeito aos cães como o resto da humanidade. “A maior parte dos cientistas que fala de cães tem o seu chapéu de cientista e de idiota”, refere Gustavo Aguirre do Instituto Baker para a Saúde Animal da Universidade de Cornell. “E sempre que começam a falar de cães põem o chapéu de idiota. Dizem coisas que não podem ser verdade. E, como cientistas, sabem-no. A verdade é que os cientistas sabem infinitamente mais sobre o genoma de um rato ou de uma ovelha ou ainda de uma mosca do que sobre o do cão”.
Há alguns anos, Aguirre e outros decidiram pôr os seus chapéus de cientista e aplicar as ferramentas da biologia moderna ao serviço do estudo do genoma do cão. O motivo foi tentar perceber as raízes genéticas de doenças congénitas como a cegueira que aprece em determinadas raças, como os poodle miniatura, os elkhound noruegueses, os setters irlandeses, os collies e os cocker spaniel. Estas doenças, caracterizadas pela cegueira nocturna seguida de uma deterioração da visão durante o dia, têm uma semelhança incrível com uma doença humana denominada retinite pigmentosa.
O estudo das causas das doenças genéticas caninas permanece um assunto central no trabalho destes cientistas, mas ao longo do tempo, o projecto adquiriu um teor mais vasto: elaborar um mapa aproximado, mas claro, do genoma do cão que nos permite compreender o que é que faz com que o cão seja aquilo que é e faça aquilo que faz.
Aguirre gosta de mostrar o seu laboratório ou “canil” aos visitantes. O laboratório tem quatro arcas enormes de aço inoxidável com filas de amostras de sangue congelado a temperaturas de 80 graus negativos. Para o mapa do genoma, os investigadores recolheram amostras de sangue de 212 cães de três gerações, todos eles resultados de cruzamento de cães de raças tão diferentes como poodls, Dobermann, setters irlandeses, elkhounds noruegueses e beagles. Felizmente, tanto para Aguirre como para os investigadores neste campo, os cães prestam-se a estudos genéticos. Ao contrário dos humanos, que têm tendência para o casamento entre familiares próximos, as raças de cães têm mantido a sua pureza através do cruzamento de cães da mesma raça. Os elkhouds noruegueses, por exemplo, são muito diferentes dos beagles não só pela sua aparência e pelas doenças congénitas que têm (os beagles quase nunca sofrem de cegueira degenerativa) mas também por causa do ADN “alterado” que se encontra em cada um dos seus cromossomas. Os genes são a sequência de ADN num cromossoma que dá ordens ao corpo para actuar. Mas longas tiras de ADN entre os genes acumularam-se ao longo dos tempos. As mutações em zonas importantes do genoma são frequentemente nocivas e têm tendência a serem eliminadas rapidamente, enquanto mutações no ADN alterado simplesmente amontoam-se, em variações ao acaso que podem servir para distinguir uma raça de outra. Os investigadores acreditam que as sequências de ADN alterado são úteis porque tendem a possuir padrões identificativos que facilitam a elaboração de uma “sonda” molecular que os define.
Isto significa que os investigadores podem usar sequências de ADN alterado como marcadores para os ajudarem a descobrir o caminho do genoma. Se cruzarmos um beagle com um elkhound, e depois cruzarmos também os seus descendentes, alguns destes cães sofrerão de degeneração da retina e outros não. E quase de certeza terão muitas diferenças nas marcas genéticas fáceis de reconhecer e medir. Se todos os portadores de doenças têm o marcador A numa determinada mancha num cromossoma enquanto os não-portadores não têm, o gene da doença deve estar eminente.
O laboratório de Aguirre e um grupo liderado por Elaine Ostrander no Centro de Investigação de Cancro Fred Hutchinson, em Seattle, utilizando a técnica descrita acima, criaram o primeiro mapa com um “sistema articulado” do genoma do cão que foi publicado em 1997. O mapa é composto por cerca de 150 marcas no genoma canino. Cada marca consiste em ADN alterado ligado a um gene que permanece constante. O gene permite aos investigadores identificar a sua posição no genoma. As variações permite-lhe investigar as diferenças genéticas entre os indivíduos e assim relacionar uma doença ou uma determinada característica física com um marcador específico.
Outra vantagem que os cães têm no que respeita à definição de um mapa de estrutura genética é o facto de se reproduzirem em grande número – ninhadas de 10 ou 12 cachorros é algo de muito frequente nos cães. As estatísticas indicam que as doenças que não podem ser identificadas no genoma humano, podem sê-lo numa família de cães. Vários genes responsáveis por distúrbios caninos foram já identificados e testes de rastreio foram desenvolvidos nesse sentido. O Clube Americano do Setter Irlandês, o primeiro a apoiar a investigação genética centrada nos problemas da criação, faz sempre um teste sanguíneo aos setters irlandeses puros que permite saber se sofrem de degeneração da retina.
Patrocinadores mais convencionais da investigação científica, como os Institutos Nacionais de Saúde e a Sociedade Americana de Oncologia, começaram a angariar fundos para o estudo da genética canina uma vez que, a pouco e pouco, se verificava que as doenças caninas e humanas parecia estarem cada vez mais relacionadas. Mais de vinte doenças congénitas nos cães foram identificadas em determinados genes defeituosos e em todos os casos o mesmo gene defeituoso foi encontrado no ser humano. Os cães são portadores do gene brca1, que foi identificado há uns anos como causador de aumento significativo do risco de cancro da mama nas mulheres. Provavelmente, 90 a 95% dos genomas canino e humano são idênticos.
Desde o início, os investigadores do genoma do cão aperceberam-se de que iriam descobrir muitas coisas acerca da história do cão e do seu comportamento inato – o tipo de coisas que as pessoas sempre quiseram saber. Ninguém espera encontrar o gene da lealdade, mas talvez existam genes do comportamento protector. E, embora não haja um gene nem sequer uma série deles que justifiquem a transformação do lobo em cão, o estudo da população genética de ambas as espécies podia dizer muito acerca da origem e história da domesticação.
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