Luto sentido e uma perspetiva etológica
O falecimento de um cão é, para muitos, uma das experiências emocionais mais intensas da vida adulta. Apesar de, socialmente, ainda persistir a tendência para minimizar esta perda — recorrendo a frases como “era apenas um animal” — a realidade psicológica e afetiva é muito diferente. Um cão não é apenas um animal de companhia; é um membro da família, um ser com quem se constrói uma relação diária de cuidado, comunicação, rotina e afeto profundo. A sua ausência deixa um vazio concreto, emocional e simbólico, que merece ser reconhecido e elaborado.
Neste artigo defendo, de forma clara, que o luto pela morte de um cão é legítimo, necessário e saudável. Ignorá-lo ou apressar a sua resolução tende apenas a prolongar o sofrimento de forma silenciosa. Compreender a natureza desta dor, saber como a enfrentar e enquadrar a morte do animal também à luz da etologia — a ciência do comportamento animal — permite-nos atravessar este processo com maior consciência e humanidade.
A natureza da dor: porque dói tanto perder um cão
A dor provocada pela morte de um cão resulta de vários fatores cumulativos. Em primeiro lugar, da ligação afetiva. Os cães são especialistas na construção de vínculos seguros com os humanos. Através da proximidade física, do olhar, do toque e da previsibilidade das rotinas, criam uma relação que, do ponto de vista neurobiológico, ativa os mesmos circuitos de apego envolvidos nas relações humanas significativas.
Em segundo lugar, há a dimensão da presença constante. Um cão participa no quotidiano de forma silenciosa, mas contínua: acompanha-nos nos momentos de alegria, mas também nos de tristeza, doença ou solidão. A sua morte não representa apenas a perda de um ser amado, mas a quebra abrupta de hábitos profundamente enraizados — o passeio, a hora da refeição, o som das patas pela casa. O luto é, por isso, também um luto pela vida que se tinha com ele.
Por fim, surge frequentemente um sentimento de culpa: questiona-se se se fez tudo o que era possível, se se tomou a decisão certa no momento certo, sobretudo quando houve eutanásia. Esta culpa, embora comum, raramente é justa. Na maioria dos casos, as decisões foram tomadas com base no amor e no desejo de evitar sofrimento, ainda que emocionalmente sejam difíceis de aceitar.
O luto pelo cão: fases, legitimidade e riscos do silenciamento
O luto pela perda de um cão segue, em muitos aspetos, as mesmas dinâmicas do luto humano. Pode incluir choque, negação, tristeza profunda, raiva, culpa e, progressivamente, aceitação. No entanto, há uma diferença relevante: a falta de validação social. Quando a dor não é reconhecida pelo meio envolvente, o enlutado tende a reprimi-la, o que aumenta o risco de luto complicado.
É minha convicção que este silenciamento social é prejudicial. Obrigar alguém a “seguir em frente” rapidamente, ou a relativizar a perda, não acelera a recuperação; pelo contrário, impede a elaboração emocional. O luto precisa de espaço, tempo e expressão. Chorar a morte de um cão não é sinal de fragilidade, mas de vinculação saudável.
Como encarar e ultrapassar a dor de forma construtiva
Ultrapassar a dor não significa esquecer. Significa integrar a perda na própria história de vida. Para isso, considero essenciais alguns princípios fundamentais.
Em primeiro lugar, permitir-se sentir. A tristeza, a saudade e até a revolta são respostas normais. Negá-las não as elimina. Aceitá-las, sem julgamento, é o primeiro passo para a sua transformação.
Em segundo lugar, ritualizar a despedida. Os rituais têm um valor psicológico profundo. Seja um funeral simbólico, uma carta de despedida, a criação de um álbum ou a plantação de uma árvore, estes gestos ajudam a dar forma e significado à perda.
Em terceiro lugar, falar sobre o cão. Partilhar memórias, histórias e fotografias permite manter viva a relação, agora transformada. O vínculo não desaparece com a morte; muda de natureza.
Finalmente, importa rejeitar a ideia de substituição. Um novo cão não “substitui” o anterior. Quando e se esse momento chegar, será uma nova relação, com a sua identidade própria. Avançar demasiado depressa pode ser uma fuga à dor; esperar em demasia, por medo de voltar a sofrer, pode ser uma forma de estagnação. O equilíbrio encontra-se na escuta honesta das próprias emoções.
Uma perspetiva etológica sobre a morte de um cão
A etologia oferece-nos um enquadramento particularmente interessante sobre a morte de um animal de companhia. Os cães, enquanto espécie social, demonstram comportamentos claros perante a doença, o envelhecimento e a morte — tanto a sua como a de outros.
Observa-se frequentemente que cães idosos ou gravemente doentes se tornam mais reservados, dormem mais e reduzem a interação social. Este comportamento não deve ser interpretado como “desistência”, mas como um ajustamento natural do organismo e do comportamento às limitações físicas.
Do ponto de vista etológico, não há evidência de que os cães antecipem a morte da mesma forma abstrata que os humanos; contudo, respondem de forma clara ao desconforto e à dor.
Quanto à morte de um companheiro — humano ou animal — muitos cães demonstram sinais de alteração comportamental: apatia, perda de apetite, vocalizações ou procura insistente. Estes comportamentos indicam que o cão reconhece a ausência e sofre com a rutura do vínculo. Ignorar este facto é um erro. A etologia confirma que os cães são capazes de luto, ainda que expresso de forma diferente da humana.
No caso da eutanásia, frequentemente vista com ambivalência pelos tutores, a perspetiva etológica é particularmente clara: quando o sofrimento ultrapassa de forma irreversível a qualidade de vida, a interrupção consciente e compassiva desse sofrimento pode ser considerada um ato de responsabilidade ética. Prolongar a vida a todo o custo não é, necessariamente, sinónimo de amor.
Conclusão: honrar a vida através do luto
A morte de um cão confronta-nos com a finitude, a vulnerabilidade e a profundidade dos vínculos que somos capazes de criar. Dói porque foi importante. Dói porque houve amor. E é precisamente por isso que essa dor merece ser vivida, respeitada e integrada.
Ultrapassar o luto não é apagar a memória, mas transformá-la em gratidão. Um cão que foi amado deixa uma marca duradoura: ensinou-nos sobre presença, lealdade e afeto incondicional. Honrar essa herança passa por aceitar a dor como parte indissociável da relação — e reconhecer que, apesar do sofrimento da despedida, a experiência de ter partilhado a vida com ele valeu plenamente a pena.
Nota pessoal
O ano de 2025, que agora se aproxima do fim, revelou-se particularmente duro para mim. Ao longo destes meses vi desaparecerem dois elementos centrais da minha família: a Yara, em março, e a Starly, em novembro. Ambas partiram através de eutanásia, após um percurso marcado pelo cancro e pelo declínio inevitável da sua qualidade de vida. Foram decisões profundamente dolorosas, mas tomadas a partir de um lugar de responsabilidade, amor e respeito pelo sofrimento que já não podia ser aliviado de outra forma.
Escrevi este artigo não apenas como exercício de reflexão, mas como um
gesto de partilha consciente. O seu propósito é acompanhar todos aqueles que já
passaram — ou que venham a passar — por esta experiência devastadora,
ajudando-os a reconhecer a legitimidade da sua dor e a encontrar formas mais
humanas, informadas e compassivas de a atravessar e integrar. Se este texto
conseguir, ainda que modestamente, aliviar o sentimento de solidão que tantas
vezes acompanha o luto pela perda de um cão, então terá cumprido o seu
objetivo.
Sílvio
Pereira
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