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25/01/19

Que cão de companhia quero ter?

Algumas vezes, os nossos serviços de aconselhamento são confrontados com pedidos de informação sobre a dificuldade que os novos donos têm em escolher o melhor cão em função daquilo que pretendem dele e tentar inseri-lo no seu estilo de vida, isso é o correcto. Mas com bastante mais frequência chegam ao nosso Departamento de Consultadoria em comportamento canino ajuda para resolução de distúrbios de conduta de animais que não foram seleccionados para viverem nos ambientes onde são inseridos. Muitos desses animais acabam, infelizmente, nos canis de adopção com um reduzido prognóstico de poderem um dia a virem a ser de novo integrados e recuperados. O que pretendemos dizer com isto é que, quase sempre a compra de um animal baseia-se mais em razões puramente estéticas e de preferência pessoal por uma raça ou um tipo de cão e menos no carácter e nas funcionalidades do animal e de saber se o escolhido está programado para se integrar no tipo de vida que lhe podemos proporcionar. O exemplo mais recente e mais gritante de como um certo tipo de cão não se adapta ao modo de vida que escolheram para ele é o caso dos Huskies Siberianos que, no início deste século, foram criados em massa, devido às particularidades fenotípicas serem muito parecidas com as do lobo, terem olhos azuis e parecerem muito dóceis, qualidades que as pessoas adoravam. Ao serem inseridos em pequenos apartamentos criaram neles grandes necessidades de liberdade e de espaços abertos onde viveram os seus avós e bisavós, tendo como consequência uma total inadaptação à vida das cidades, sendo nessa altura os cães que mais fugiam das casas onde eram obrigados a viver.

A manipulação genética poderia tornar possível gerar cães que se parecessem mais com Huskies ou até com raposas do agrado de tanta gente mas com características mais dóceis, mais sociáveis e que se adaptassem bem a espaços confinados. No entanto, embora essa abordagem fosse, decerto, gerar novidades, mas também controvérsias, não é disso que se necessita para salvar o cão. Já existe alteração genética mais do que suficiente entre os cães de hoje para gerar uma ampla variedade de indivíduos bem adaptados para a vida de animais estimação; o que se precisa fazer então é reconhecer esse papel como a função principal do cão e tomar a iniciativa das mãos daqueles que se empenham todos os dias em melhorar a qualidade dos animais que criam, não só em termos de funcionalidade, de carácter mas também em termos de saúde.

A outra aplicação da engenharia genética, a clonagem, tampouco é a solução para produzir um cão de companhia perfeito. O multimilionário texano John Sperling clonou a sua cadela Missy, cruzada de Border Collie com Husky, e os clones com certeza parecem-se com ela. Mas de que é que o dono gostava? Da aparência da Missy ou da sua personalidade? Porque a personalidade de um cão é em grande parte produto da sua experiência de vida que não pode ser replicada graças à genética in vitro.

Quais são, então, as barreiras que impedem o desenvolvimento de um melhor cão de companhia? Deixando de lado, por um momento, as características desse tipo de cão, parece haver pelo menos duas barreiras: a primeira é que os criadores de cães raramente tomam as melhores decisões sobre que cães criar com base em quais deles se revelaram melhores companheiros. Simplesmente podem não ter informações sobre como os animais que entregaram vieram a desempenhar as suas funções como tal. Ou podem estar primariamente concentrados nas possibilidades de que os cães de sua criação sejam ou não competitivos nos ringues de exposição – mesmo que a maior parte dos cães não seja adquirida para participar em competições. Além do mais, é difícil fazer com que os criadores sejam responsáveis pela qualidade dos cachorros que produzem. Eventuais fracassos podem ser prontamente atribuídos a erros cometidos por pessoas inexperientes que adquirem os cachorros – que os alimentaram com a dieta errada, que não lhes deram exercício suficiente, ou lhes deram em excesso e assim por diante.

A segunda barreira podemos defini-la com um ditado “preso por ter cão e preso por não ter”, quer isto dizer, que quanto mais responsável for o dono de um cão, maior a possibilidade de que esse cão seja castrado. Em resumo, muitos dos cães mais cuidadosamente seleccionados e nutridos, aqueles que se adaptam perfeitamente ao âmbito da companhia, quase nunca conseguem passar os seus genes para a geração seguinte. Por outro lado, o que nasce são cachorros que nascem mais ou menos por acidente, por causa de donos irresponsáveis, muitos dos quais são atraídos por cães com status, como os Pit Bulls, os Pastores Alemães ou os Rottweilers (daí a quantidade de exemplares dessas raças e de seus cruzamentos que acabam em canis de adopção ou de abate onde irão terminar os seus dias) Como todos os donos de cachorros são encorajados, de modo correcto, a castrar e esterilizar os seus animais para reduzir a superpopulação de cães, fazer isso, infelizmente, trabalha contra o propósito de criar uma população mais voltada para a companhia.

Também é problemático o facto de que a criação de cães com base na personalidade não seja tão simples como criar cães com vistas à sua aparência. Parte da explicação está em que os genes não codificam os comportamentos como tais – mas outra parte está em que o próprio papel do cão, de companhia não está claramente definido. Presume-se que cada tutor ou futuro tutor tenha um cão ideal em mente, de modo que existe um número infindável de cães “ideais”. No entanto, certos traços são universalmente desejados. A maioria das pessoas acredita que os cães de companhia devem ser dóceis, obedientes, robustamente saudáveis, fáceis de controlar, seguros com crianças, facilmente treináveis em casa e capazes de mostrar afeição pelos donos. Muitos donos também valorizam o contacto físico com o seu cão – uma descoberta que não deve surpreender, pois agora sabemos que acariciar um cão não só reduz o stress como também conduz à libertação da hormona do “amor” a oxitocina.

Outras características são avaliadas diferentemente por donos distintos. Algumas pessoas preferem um cão que seja dócil com toda a gente; outras, especialmente os homens, valorizam um alto sentido de territorialidade no cão, que eles veem como uma ajuda para a protecção da sua casa. Os homens também tendem a expressar uma preferência por cães enérgicos e leais, enquanto muitas mulheres dão mais valor à calma e à sociabilidade.

Mas a maior parte dos donos não prioriza o carácter quando escolhe um cão. Por exemplo, muitos valorizam mais a aparência que a personalidade e consideram o treino como relativamente sem importância, mesmo que esperem que os cães sejam obedientes. Além disso, se é verdade que um cão se adapta melhor ao estilo de vida de uma dada pessoa, isso pode mudar à medida das circunstâncias da vida dessa pessoa. Embora o tempo de vida dos cães seja menor que o nosso, ele ainda é bem longo se comparado com o moderno ritmo de mudança nos actuais estilos de vida.

Dito isto, a selecção com base no temperamento torna-se ainda mais desafiadora quando consideramos quantas variações existem, mesmo dentro de uma raça específica. Muitos dos traços “de companhia” mencionados acima são influenciados pela genética apenas de forma marginal. Anormalidades físicas e predisposições a doenças com base na genética podem, e devem, ser objecto dos cuidados de uma criação mais esclarecida; muitos outros traços, porém, tais como afabilidade, obediência, falta de agressividade e uma predisposição para a afeição são fortemente influenciáveis pelo ambiente e pela aprendizagem precoces. É difícil ver como esses traços podem ser activamente seleccionados sem que paralelamente melhore a compreensão dos donos sobre como inculcá-los nos seus novos cães ou cachorros.

Traços de companhia podem ser difíceis de selecionar, mas com certeza outros traços comportamentais específicos das raças precisam ser reduzidos nos cães de companhia. A maior parte da selecção genética imposta aos cães durante a sua longa associação com o homem tem sido dirigida para traços úteis, como a habilidade nos pastoreio, na caça e na guarda. Mas agora que os cães no Ocidente, na sua grande maioria não se destinam a cumprir essas tarefas, precisamos reduzir esses vínculos, pois de outra forma a frustração prevalecerá. Aconteceu inúmeras vezes terem-nos pedido conselho se um lindo cachorro Border Collie daria um bom animal de companhia. Sempre dissemos que não, que esses cães são criados para trabalhar no campo e decerto achariam intolerável a vida na cidade. No entanto, quase todas essas pessoas que aconselhámos dessa forma foram em frente e compraram Border Collies de qualquer maneira e muitos arrependeram-se disso – mas não tanto como decerto fariam os próprios cães se o arrependimento existisse no seu arsenal emocional. Se tais cães devem adaptar-se ao âmbito da companhia, precisamos reconfigurar a raça para que eles não se sintam frustrados.

Finalmente, embora a extensão em que podemos criar cães de companhia seja ilimitada, também devemos ser cuidadosos para não ir longe demais na direcção oposta – aumentando a capacidade de afeição dos nossos cães até ao ponto de se tornar uma carga para eles. Já existe uma epidemia de desordens de separação, as chamadas ansiedades por separação, entre cães de companhia; aqueles que sejam avassaladoramente motivados para estar com os seus donos, o hiperapego, iriam, presume-se, sofrer de forma desproporcionada se deixados sozinhos. A maior parte dos donos não quer que o seu cão seja demasiado “pegajoso”. (ou, por falar nisso, demasiado saltitante: pede-se que os cães de companhia fiquem inativos, em média, durante três quartos das suas vidas.)

Há consideráveis desafios a serem enfrentados antes que os métodos de criação melhorem, não só porque muitos criadores ainda subestimam a necessidade de socialização dos cachorros, mas também porque existe um óbvio mecanismo pelo qual a melhor prática se tornará disseminada, graças simplesmente ao número de pessoas envolvido. A informação de que os criadores precisam para criar cachorros bem socializados agora está amplamente disponível – esperemos que a sua adopção universal seja apenas uma questão de tempo.

Mesmo que a informação seja cuidadosamente difundida, não é provável que a criação irresponsável desapareça. As instituições de adopção e de recolocação arcarão inevitavelmente com o peso de lidar com os cães não desejados que resultarem dessa criação. Mas, felizmente também, elas começam a ter à sua disposição cada vez mais a informação necessária para adoptar métodos de bases científicas para reabilitar esses cães, e para garantir a compreensão, entre os tutores adoptivos, do que faz os cães comportarem-se de uma certa forma e como o fazem, e para os auxiliarem estão a formar-se jovens terapeutas comportamentais caninos possuidores de vasta base técnica e cientifica, como são os casos dos formados nos Cursos de Formação do Centro Canino de Vale de Lobos. 


Sílvio Pereira


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